segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Férias

O Blog entrou em recesso. Volta em 2014. Veja os posts mais lidos do ano:

- Vida desperdiçada: Em meio ao contexto das manifestações, morte de adolescente por policial em São Paulo fica em segundo plano em relação à violência dos protestos.
- Clássico de Rob Walker é publicado no Brasil: Segundo o autor, a disciplina de Relações Internacionais não descreve a prática das relações internacionais, mas a constitui.
- O mágico de Oz e a história política americana: Clássico de Frank Baum está de volta em filme da Disney e novas traduções para o português.
Editora lança "O Brasil depois da Guerra Fria" na versão eBook: Obra está disponível para download no site da Livraria Cultura.
- Cidadania na era digital: Relatório divulgado pelo Pew Research Center mostra forte crescimento no uso das redes sociais para a atuação política nos Estados Unidos. Além disso, que a disparidade entre mais e menos educados na participação se eleva no ambiente online.
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A experiência do fim

Os 50 anos do assassinato de JFK e sua relação com a história.

Se há um Winston Churchill na história política norte-americana, este é John F. Kennedy. Não que ele tenha sido o melhor orador entre os presidentes dos Estados Unidos. Um embate com Abraham Lincoln seria, muito provavelmente, desvantajoso a JFK. De qualquer forma, algumas semelhanças aproximam Kennedy de Churchill, certamente dois dos políticos mais importantes do século XX.

Como Churchill, Kennedy quebrou tradições. Se o ex-primeiro-ministro atacou as regalias da aristocracia britânica, JFK foi, na história, o segundo candidato católico a presidente dos Estados Unidos e o primeiro a ser eleito, numa nação de ampla maioria protestante. Kennedy também enfrentou o velho racismo do Sul – depois de muita pressão, é verdade – e foi o presidente eleito mais jovem da história norte-americana, aos 43 anos, quase 27 anos mais moço que o seu antecessor, Dwight Eisenhower, quando este deixou o cargo. É verdade que Theodore Roosevelt chegou à Casa Branca mais novo que Kennedy, aos 42 anos, mas Ted, como era conhecido, não foi eleito presidente, mas vice-presidente e tomou posse depois do assassinato de William McKinley, em 14 de setembro de 1901.

Como Churchill, Kennedy tinha pretensões literárias e era adepto da historiografia amadora. O norte-americano não alçou vôos tão altos quanto o britânico, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1953, mas JFK foi agraciado com a principal comenda literária dos Estados Unidos, o prêmio Pulitzer, em 1957, com o livro Profiles in Courage. Não à toa, ele escreveu um compêndio sobre a coragem de certos políticos norte-americanos do passado, que enfrentaram o senso comum e mudaram seu tempo com propostas inovadoras. 

Como Churchill, Kennedy foi a encarnação política do espírito de liderança. Os discursos de JFK, por exemplo, publicados pela Zahar, com contextualização histórica do professor Robert Dallek e de Terry Golway, são fonte preciosa de uma época em que o mundo esteve à beira do precipício. (Dallek talvez seja o principal historiador vivo da Presidência americana, autor também do sensacional Nixon e Kissinger: Parceiros no poder, que conta a novela da relação desses dois personagens, brincando de deuses na Terra durante a Guerra Fria.)

Afinal, durante o curto mandato de Kennedy, Estados Unidos e União Soviética estiveram envolvidos direta ou indiretamente na invasão frustrada de exilados cubanos treinados pela CIA à Baía dos Porcos, na Crise de Berlim e na perigosíssima Crise dos Mísseis. Nesse conturbado contexto, é difícil saber quem veio primeiro: se os fatos ou o presidente. Foi a postura agressiva de Kennedy na campanha à Presidência e nos primeiros anos de governo que gerou respostas soviéticas à altura? Ou JFK foi pego pelo destino, tendo que carregar o fardo de uma contenda atrás da outra durante os poucos anos em que esteve na Casa Branca?
 
Na verdade, Kennedy acendeu o pavio da Guerra Fria. Desde os primeiros momentos de sua campanha, atacou o então presidente Eisenhower supostamente por permitir que os soviéticos tivessem passado à frente dos Estados Unidos tanto na corrida armamentista quanto na espacial, sendo que apenas na segunda isso era verdade.

Apesar de não ter sido o mentor do plano de retirada de Fidel Castro do poder e de não ter envolvido as Forças Armadas norte-americanas na invasão da Baía dos Porcos, JFK estava ciente do fato e deu luz verde à operação comandada pela CIA. Para muitos historiadores, a Crise dos Mísseis e o quase desastre ocorrido na viagem-teste apressada do primeiro submarino nuclear soviético, o K-19 (conhecido como o “fazedor de viúvas”, ou “Hiroshima”, pela Marinha russa, e cuja história foi transformada em filme com Harrison Ford), foram respostas da linha-dura no Kremlin à agressividade de Kennedy, talvez necessária a JFK internamente, para contrapor as questões levantadas por seu catolicismo e sua juventude.

Na verdade, Eisenhower, ou Ike, como era conhecido, deixou a Kennedy uma vantagem significativa na corrida armamentista da Guerra Fria. Mesmo assim, JFK, ao tomar posse, iniciou a produção de 1000 mísseis balísticos intercontinentais, além de 32 submarinos Polaris, com mais 656 mísseis. Moscou, no mesmo momento, não tinha um submarino capaz de lançar mísseis balísticos até o K-19, que podia carregar apenas três. Na mesma época, enquanto os soviéticos tinham 50 bombardeiros que poderiam atacar os Estados Unidos lançando ogivas nucleares sobre o país, os norte-americanos tinham mais de 500, prontos para serem utilizados.

O modelo da Guerra Fria, como se sabe, não comportava tamanho desequilíbrio estratégico. Uma tentativa dos soviéticos de demonstrar poder foi tornar o K-19 operacional rapidamente, o que quase causou um acidente nuclear de proporções catastróficas. Outra foi o envio de mísseis a Cuba, no episódio que acabou conhecido nos EUA como a Crise dos Mísseis (na União Soviética como a Crise do Caribe e, em Cuba, como a Crise de Outubro).

Além disso, a política agressiva de Kennedy diminuiu a margem de negociação de Krushchev a respeito de Berlim, um impasse que vinha sem solução desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Pressionado internamente, Krushchev endureceu a posição no encontro de cúpula com Kennedy em Viena, em junho de 1961, quando o K-19 saía para a sua primeira viagem-teste. Sem acordo, a capital alemã foi dividida por um muro.

No entanto, como um personagem shakespeariano capaz de pensar sobre si mesmo e mudar seu comportamento, o Kennedy que atravessou uma sucessão de crises que poderiam ter levado a humanidade ao fim é bastante diferente daquele jovem político que buscava se impor na campanha presidencial e no início do mandato. Em 1963, quando foi assassinado em 22 de novembro, Kennedy buscava ser o porta-voz da esperança e da paz, do entendimento e da compreensão, da auto-reflexão e da justiça. 

Seus dois principais discursos desse momento – “Uma visão de paz” e “A crise moral da nação” – apresentam argumentos concretos para uma vida mais justa dentro e fora dos Estados Unidos, sem que isso significasse uma deferência ao sistema comunista. No primeiro pronunciamento, por exemplo, feito em Washington em 10 de junho de 1963, JFK afirmou:

"Alguns dizem que é inútil falar sobre a paz mundial, ou sobre a lei mundial, ou sobre o desarmamento mundial, e será inútil até que os líderes da União Soviética adotem uma atitude mais esclarecida. Eu espero que um dia isso aconteça e acredito que possamos ajudá-los. Mas também acredito que devemos reexaminar nossa própria atitude - como indivíduos e como nação -, pois ela é tão essencial quanto a deles. Todo cidadão que reflita sobre os desesperos da guerra e queira a paz deve começar a olhar para dentro - examinar sua própria atitude em relação às possibilidades da paz, em relação à União Soviética, ao curso da Guerra Fria, à liberdade e à paz aqui neste país".

P.S.: Este texto é uma versão da apresentação que fiz à edição brasileira de "Uma visão de paz: Os melhores discursos de John F. Kennedy", organizado por Robert Dallek e Terry Golway e publicado pela editora Zahar.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Diplomacia presidencial

Observatório Político Sul-Americano analisa a politização da política externa brasileira nos governos FHC, Lula e Dilma.

De autoria da professora Maria Regina Soares de Lima (UERJ), um dos principais nomes do país no campo da política externa brasileira e das relações internacionais, e de Rubens Duarte, que cursa atualmente seu doutorado na Universidade de Birmingham, o Observatório Político Sul-Americano (OPSA) publicou agora em novembro uma interessante análise comparativa da diplomacia dos governos FHC e Lula/Dilma. Mais que apontar diferenças, o texto reforça a ideia de que em regimes democráticos, para o bem ou para o mal, a política externa é sempre politizada, "refletindo as orientações político-ideológicas do governo de turno".

Os autores partem da crítica que é feita à diplomacia dos governos Lula e Dilma, que estaria marcada, segundo a oposição e a "mídia conservadora", por um "viés ideológico". Tal característica, ainda segundo os críticos, se mostraria claramente na "branda reação" à nacionalização da refinaria da Petrobrás na Bolívia por Evo Morales; na entrada da Venezuela no Mercosul; no afastamento do Paraguai; na contratação de médicos cubanos; e no episódio de "'fuga' cinematográfica do senador Roger Molina, asilado na embaixada brasileira".

Além disso, Lima e Duarte ressaltam que muitas vezes um "argumento binário" pauta a crítica à aproximação que a diplomacia Lula, em especial, desenvolveu em relação aos países da América do Sul, África e Ásia. Para os autores, a crítica tem por base a falácia de que, ao enfatizar as relações com o Sul ou com países progressistas na América do Sul, "a política externa petista estaria se afastando dos países do Norte, de tradição democrático-liberal".

Como afirma o texto, esta interpretação da partidarização da política externa revela "um sentimento tecnocrático", calcado na ideia de que haveria um "interesse nacional" objetivo que pudesse ser perseguido sem a influência das orientações político-ideológicas do governo em posse do Executivo, algo sem sentido do ponto de vista epistemológico. Na democracia, escrevem os autores com precisão, "mesmo que os compromissos internacionais assumidos por qualquer governo democrático não devam ser revertidos a cada mudança de governo, sob pena do país perder sua credibilidade face aos parceiros externos, existe sempre alguma latitude para que governos eleitos possam incluir temas de política externa em suas plataformas eleitorais".

Da mesma forma que as orientações estratégicas do governo Lula - que eleva a participação do país nas relações econômicas internacionais e na discussão dos grandes problemas mundiais, "ressaltando os efeitos da 'globalização assimétrica' e a desigualdade entre as nações" -, a política externa do governo FHC também esteve alinhada aos objetivos políticos do partido deste presidente ao priorizar os processos de estabilização econômica e reforma do Estado, a inserção competitiva e a modernização produtiva. Nesse contexto, a diplomacia, como lembram os autores, teve o papel de restaurar a credibilidade econômica e política do país, uma agenda presente no debate político brasileiro pelo menos desde as eleições de 1989 e que se traduziu na adesão do Brasil aos regimes internacionais vigentes de comércio, direitos humanos, meio ambiente, controle nuclear e de tecnologia de mísseis.

Além da democracia, os autores ainda ressaltam a importância da presidencialização da política externa brasileira, que também acaba favorecendo a politização da diplomacia em detrimento da autonomia do Itamaraty. É o que Jeffrey Cason e Timothy Power caracterizam, segundo Lima e Duarte, como o "papel direto e crescente do presidente na política externa". Para os pesquisadores do OPSA, a presidencialização da política externa é resultado não apenas da "centralidade do presidente da República no estabelecimento da agenda política da nação", como do fato de que, em última instância, "os atos de escolha e demissão de seus ministros são de sua estrita competência".

No que diz respeito à polítização da política externo no regime democrático brasileiro e à inadequação da crítica que ressalta o "viés ideológico" da diplomacia Lula e Dilma, o artigo de Maria Regina Soares de Lima e Rubens Duarte soa perfeito. No entanto, o texto parece, de alguma forma, celebrar a estratégia petista em detrimento da atuação tucana no campo, uma interpretação que, ao meu ver, deve vir acompanhada de uma análise histórica contextual. Nesse caso, a pergunta que fica é: sem as ações de estabilização e atualização da agenda implementadas anteriormente teria sido possível o desenvolvimento de uma estratégia mais assertiva de política externa no governo Lula? Dificilmente.

Além disso, a ação estratégica internacional do Brasil durante a Presidência Lula, em especial, pode ser criticada de outras maneiras que não aquela calcada no argumento do "viés ideológico". Ou seja, novamente pergunta-se: talvez não tenham dado os autores importância demais a uma crítica desprovida de qualquer fundamento mínimo de sustentação?

O professor Rob Walker, por exemplo, faz críticas bastante contundentes à política externa de Lula por outros parâmetros, bem mais sofisticados. Segundo ele, como já reproduzido anteriormente neste blog, o conceito de multipolaridade pode ser muito útil, mas não se pensado como no século XIX: "É nesse sentido que deveríamos prestar atenção ao pluralismo. O plural, por si só, não é algo necessariamente positivo. É preciso ter muita atenção sobre como o plural está sendo pensado. Por um lado, pode-se fazer muita coisa interessante com o termo, em prol do entendimento de novas formas de distribuição de poder e da autoridade. Por outro, o discurso predominante sobre o tema reproduz formas muito antigas e perigosas da velha política de poder bismarkiana. Nesse ponto em particular, a contribuição da política externa brasileira para o sistema internacional é, no mínimo, discutível, não parecendo mais que uma imitação da Alemanha de Bismarck".

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A vida nos "aglomerados subnormais"

Onde TV, geladeira e celular chegam primeiro.

Divulgado no último dia 6, relatório do IBGE sobre as favelas traz à tona um tema político tão antigo quanto importante, a deficiência na provisão de bens públicos em contraposição aos acessos de consumo na sociedade brasileira. Mesmo que as informações sejam específicas desse tipo de comunidade que, por viver na maior parte das vezes ao redor das grandes cidades, ganha características específicas desse entorno, a conclusão dos resultados é a de que, ao menos nas favelas brasileiras, TV e geladeira chegam primeiro que saneamento, hospital, escolas e, muitas vezes, segurança.

Segundo a pesquisa, realizada sobre o ano de 2010, 6 mil favelas abrigavam no Brasil, na época, mais de 3 milhões de residências e mais de 11 milhões de pessoas, a maior parte no Sudeste. Além disso, as cinco maiores regiões metropolitanas brasileiras concentravam quase 60% dos moradores de favelas. Desse total, 18,9% na Grande São Paulo e 14,9% no Rio de Janeiro e entornos, além de Belém, Salvador e Recife.

A pior disparidade apresentada está, por exemplo, na educação. Nas comunidades analisadas, o índice de uso de creche e escola pública é de 90%, mas apenas 1,6% tem ensino superior. Fora das escolas boas, poucos chegam à universidade. Por ironia, às públicas muito menos.

Como no "asfalto", no entanto, mais de 90% dos moradores de favela têm geladeira e televisão. O uso do celular é intenso. Mais de 50% das residências nessas comunidades têm somente o telefone celular, o índice do lado de fora é de 32,8%. Apesar disso, os números sobre "computador" e "computador com acesso a internet" são quase três vezes menores dentro que fora das favelas.

Essas pessoas, com geladeira, televisão e celular, moram no que o IBGE chama de "aglomerados subnormais", ou seja, "assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos e palafitas". Seja onde estiverem, e poderiam ter arrumado um nome melhor, os moradores de tais comunidades teriam por teoria direito a escola, oportunidades iguais, hospital, acesso à justiça, saneamento e segurança, como é devido a todo e qualquer cidadão. Afinal, essas são funções básicas da autoridade política, das quais dependeria sua própria origem e existência. Ou não?

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vida desperdiçada

Em meio ao contexto das manifestações, morte de adolescente por policial em São Paulo fica em segundo plano em relação à violência dos protestos.

Dois eventos violentos interligados ocorridos em São Paulo, o primeiro no domingo (27/10) à noite e o segundo no dia seguinte, praticamente dominaram a cobertura da grande imprensa brasileira na última semana de outubro. O primeiro deles foi a morte do adolescente Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, vítima de um disparo no tórax após uma abordagem da Polícia Militar de São Paulo, na região de Vila Medeiros, Zona Norte da capital. O segundo foi o violento protesto, decorrente do fato, no qual manifestantes fecharam as pistas da Rodovia Fernão Dias, atearam fogo em duas carretas, cinco ônibus e um carro, pelo menos um deles chegou a dirigir um caminhão-tanque na contramão. Em meio ao contexto das seguidas manifestações no país, infelizmente o primeiro ganhou menor atenção que o segundo, pelo menos no discurso midiático.

O Jornal Nacional, por exemplo, abriu sua reportagem sobre o caso na segunda-feira à noite com o texto: "São Paulo voltou a sofrer ataques violentos de vândalos - que incendiaram caminhões e ônibus e bloquearam a rodovia federal que liga a capital paulista a Belo Horizonte". A matéria de 5m23 tratou da morte de Douglas por apenas 1m45, sendo o restante tomado pela violência dos protestos. Na reportagem, apenas o porta voz da PM de São Paulo foi ouvido como representante do estado sobre o caso. Durante a edição do dia, foram feitas várias aparições ao vivo da região em São Paulo, produzidas de um helicóptero, nas quais o termo "vândalos" foi repetido com exaustão.

A Folha, na terça-feira, seguiu mais ou menos o mesmo caminho. Colocou na capa uma foto de um ônibus incendiado e o título: "Protesto contra morte de jovem tem incêndios e saques em SP". Logo em seguida, vinha uma chamada para um artigo publicado pelo jornal: "Ataque a policial deve ser considerado agressão ao Estado", referindo-se ao bárbaro espancamento sofrido pelo coronel Reynaldo Rossi na noite de sexta-feira, 25/10. Abaixo do título do artigo, ainda na capa, a Folha colocou mais uma chamada, sobre Black Blocs presos pela polícia paulista.

No mesmo contexto, a manchete do Globo no dia seguinte à morte de Douglas foi: "Vândalos interditam rodovia e queimam veículos em SP; cerca de 90 pessoas são detidas".

É claro que a violência da manifestação, que pode ter tido participação, segundo se apura, do crime organizado, merece toda a atenção da mídia e da sociedade. No entanto, também parece notório que, em meio à tensão e ao acirramento em torno das seguidas manifestações no país, a gravidade da morte de Douglas ficou, infelizmente, em segundo plano.

Afinal, trata-se da morte de um jovem cidadão por um policial pago pela sociedade para servi-la e protegê-la, fato que se configura como uma total inversão do sentido original-existencial do Estado, calcado na teoria hobbesiana canônica de que abrimos mão da nossa liberdade radical em nome de uma proteção garantida pela autoridade legal. Quando o próprio Estado não somente não garante a segurança mas passa a ser, ele mesmo, fonte de insegurança, os princípios legitimadores da autoridade e do ordenamento social se esfacelam.

Além disso, a morte de Douglas Martins Rodrigues está longe de ser um caso isolado, dado que a polícia brasileira está entre as que mais mata no mundo. Como informa a BBC, os homicídios cometidos por policiais no Brasil, em geral classificados como "resistência seguida de morte" ou "autos de resistência", já foram tema de estudo da ONU, que analisou 11 mil casos entre 2003 e 2009 sob tais rubricas somente no Rio e em São Paulo. Sobre o estudo, o enviado da ONU Philip Alston afirmou, em 2010, ter provas de que boa parte dessas mortes foram na realidade execuções ilegais.

Ainda sobre o mesmo assunto, infelizmente, pouco se comentou que está para ser votado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4471/2012, que estabelece procedimentos para a investigação das mortes e lesões cometidas por agentes do Estado, como policiais, durante o serviço. Hoje, as mortes registradas como “autos de resistência'' ou “resistência seguida de morte'' são raramente investigadas.

A gravidade da morte de Douglas Martins Rodrigues, de apenas 17 anos, por um agente do Estado, poderia ter servido para que a sociedade brasileira pudesse refletir com mais cuidado sobre suas prioridades e o comportamento, a remuneração, a cultura e o treinamento do aparato policial brasileiro. Infelizmente, este não parece ter sido o caso.

Em tempo: O Globo iniciou no domingo 3/11, uma semana após a morte de Douglas, uma série de reportagens sobre a violência policial no país.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Tragédia via controle remoto

Documentos divulgados pelo Washington Post mostram que governo paquistanês apóia ataques de aviões não-tripulados americanos em seu território.

O Washington Post divulgou, no último dia 23 de outubro, documentos que comprovam a ciência e a aprovação do governo do Paquistão aos ataques de aviões não-tripulados americanos (drones) em seu território. A notícia vai de encontro às inúmeras declarações oficiais de Islamabad pedindo o fim das ofensivas, que se tornaram uma ação-chave do governo Obama em sua estratégia contra o terrorismo. Junto ao encontro do presidente americano com o primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, ocorrido também no último dia 23, em Washington, a divulgação dos documentos chama a atenção para o trágico e polêmico uso de drones como forma de combate a organizações terroristas na regiâo.

Um relatório da Anistia Internacional, por exemplo, divulgado na véspera do encontro entre Obama e Sharif, condena veementemente o uso de aviões não-tripulados contra possíveis terroristas no Waziristão do Norte, região tribal do noroeste paqustanês que faz fronteira com o Afeganistão. A Anistia conta, por exemplo, a história de Mamana Bibi, de 68 anos, morta em um bombardeio quando colhia vegetais no jardim da sua casa, em outubro de 2012.

Um estudo da ONU vai no mesmo caminho e afirma que os drones americanos já mataram pelo menos 400 civis no local. Outro do Bureau of Investigative Journalism, organização não-governamental britânica, calcula que entre 407 e 926 civis morreram em ataques desse tipo.

Com base nesses e outros números, o estúdio californiano Pitch Interactive produziu um website, ilustrativo da tragédia. Segundo as informações no site, mais de 3 mil pessoas, incluindo 175 crianças, morreram em 372 ataques por controle remoto entre 2004 e 2013 no Paquistão. Nesse contexto, não espanta que, segundo reportagem da Bloomberg, os gastos com aviões não-tripulados podem chegar a quase 90 bilhões de dólares nos próximos 10 anos, com despesa anual atingindo valores superiores aos 10 bilhões de dólares, duas vezes o que é investido hoje por ano no desenvolvimento dessa tecnologia nos Estados Unidos.

Na mesma semana da divulgação pelo Post dos documentos, da visita do premier paquistanês a Washington e do lançamento do relatório da Anistia Internacional, o Huffington Post publicou ainda uma entrevista com um ex-funcionário do Departamento de Estado americano no Iêmen, outro país-alvo dos drones americanos. Segundo a fonte, cada ataque desse tipo no país cria de 40 a 60 novos inimigos dos Estados Unidos na região.

sábado, 19 de outubro de 2013

Democracia digital e cultura política

Simpósio internacional debate internet e participação política cidadã.

A participação política do cidadão é um dos temas mais discutidos entre pesquisadores da chamada democracia digital, e-democracia ou ciberdemocracia, que, resumidamente, trata da análise, do uso e desenho de iniciativas digitais em prol do incremento da política em regimes democráticos. A discussão, por exemplo, esteve muito presente no II Simpósio Internacional Brasil-Alemanha sobre Política e Internet: "Democracia na Era Digital", realizado no Instituto Goethe em Salvador, nos últimos dias 17 e 18 de outubro, promovido pela instituição alemã e o Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital (CEADD) da Universidade Federal da Bahia (FACOM/UFBA).

O tema ganha ainda mais importância quando pensado a partir de um contexto específico, marcado por fenômenos como a queda no comparecimento às urnas – inclusive onde o voto é obrigatório –, o sentimento de baixa efetividade da cidadania na decisão política, o descolamento entre o sistema político e o cidadão, o desinteresse na política, uma visão muito negativa da política e dos políticos, o baixo capital político da esfera civil, a ausência de soberania popular, a falta de espaços deliberativos, a baixa representatividade no debate público etc.

Não à toa, já são muitas as iniciativas digitais dispostas na rede, com o intuito de "empoderar" o cidadão na política de sua cidade, seu estado, seu país, inclusive de seu planeta, como nos temas do meio ambiente, da energia nuclear ou dos direitos humanos. Tais iniciativas são originadas tanto de governos, como é o caso do Gabinete Digital, no Rio Grande do Sul – experiência referência hoje para projetos semelhantes no mundo todo –, como da própria sociedade civil, como o Votenaweb, que procura aproximar o cidadão brasileiro do que se passa no Congresso Nacional, ou o Avaaz, que serve como plataforma mobilizadora em favor de determinados projetos de lei.

Ao mesmo tempo, no entanto, algumas dúvidas pairam sobre o potencial da comunicação política via internet. Alguns autores, por exemplo, afirmam que a internet não torna ninguém mais politizado, apenas serve de instrumento para aqueles que já são engajados. No mesmo sentido, algumas pesquisas sugerem que as redes sociais favorecem uma reunião daqueles que concordam entre si e que isso pode acabar enclausurando o cidadão em ambientes de baixa contestação. Da mesma forma, alguns críticos temem que a cidadania digital acabe por esvaziar de vez a participação fora da rede e que o cidadão fique restrito ao ativismo do tipo "clique no mouse".

Além disso, há o avanço das empresas e da lógica comercial sobre o terreno, que tem sido levantado como um risco nada desprezível, haja vista o que ocorreu na mídia de massa tradicional. Como se não bastasse, a infraestrutura de cabos, fundamental à comunicação digital, também é dominada por empresas e concentrada nos países mais ricos, em especial entre os Estados Unidos e a Europa, o que por si só já gera um acesso diferenciado à experiência na rede.

Entretanto, apesar dos desafios, a internet traz sem dúvida um potencial de transformação da comunicação política nas democracias contemporâneas em favor de uma cultura mais participativa, em especial com relação aos mais jovens. Afinal, aquele cidadão passivo que cumpre somente o papel de "receptor" das mensagens veiculadas no formato "grade de programação" tende a ficar para trás, no tempo e na história.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A encruzilhada Obama

O que está por trás do impasse político que paralisou o governo americano.

Segundo Michele Swers, professora da Universidade Georgetown, em Washington, em análise publicada pelo blog USAPP-American Politics and Policy, da London School of Economics and Political Science (LSE/UK), a chave para se entender o impasse atual no Congresso Americano, relativo ao orçamento do governo Obama, é o fato de que uma boa parte dos representantes em cena vem de condados onde seus partidos têm posição relativamente confortável. Ou seja, esses representantes são hoje mais temerosos das primárias contra um adversário interno ideologicamente mais radical do que das eleições de 2014 – o mandato de representante nos Estados Unidos obedece o sistema distrital e é de apenas dois anos.

Nesse contexto, com receio de prover munição aos competidores internos, representantes eleitos se tornam mais fechados em suas posições, deixando pouco espaço de manobra para negociações na Câmara. O resultado é uma construção de consenso dificultada entre os dois partidos.

De fato, após a tomada da Câmara pelos republicanos em 2010, quando os democratas amargaram uma perda recorde de 63 cadeiras, a variação em 2012 foi muito pequena, de mais oito cadeiras para os democratas e menos sete assentos para os republicanos (um ficou indeciso). Desde 2010, o governo Obama e a maioria republicana na Câmara têm travado duras batalhas sobre questões fiscais e as funções do Estado.

Antes disso, por exemplo, com o controle da Câmara pelos democratas, o governo Obama pôde aprovar legislações como o Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare. O ato foi transformado em lei em 23 de março de 2010 e estabelece um amplo leque de opções ao governo federal, incluindo subsídios e incentivos, no intuito de tornar a cobertura dos planos de saúde mais amplas e, principalmente, mais acessíveis à população americana.

Desde 2010, no entanto, as coisas ficaram mais difíceis para a Casa Branca, até porque boa parte dos analistas creditam a esmagadora vitória republicana na Câmara, naquele ano, a uma reação conservadora ao Obamacare em meio à onda Tea Party. Daquele momento em diante, além dos impasses sobre o orçamento, iniciativas mais amplas do governo Obama, como a reforma da imigração, foram bloqueadas.

Ao mesmo tempo, um estudo de Keith Poole, da Universidade da Califórnia em San Diego, e Howard Rosenthal, da Universidade de Nova York, sobre o comportamento dos representantes em votações sugere que, nos últimos 30 anos, democratas vêm se tornando progressivamente mais liberais, e republicanos, mais conservadores. No caso do GOP, a radicalização cresce especialmente depois do governo Reagan e da chamada "revolução de 1994", que colocou o Partido Republicano no controle do Congresso Americano (Câmara e Senado) pela primeira vez em 40 anos. Na época, Bill Clinton vinha com uma agenda que incluía medidas liberais também para a saúde e a integração de homossexuais nas Forças Armadas.

Sobre o impasse atual, Michele Swers lembra ainda que a polarização se alimenta da distância ideológica que há entre o Senado, controlado pelos democratas, e a Câmara dos Representantes, controlada pelos republicanos, e da própria pauta política conduzida pela Casa Branca, que coloca pressão sobre os dois partidos.

Para o GOP, coisas como o Obamacare são agora uma questão de vida ou morte. O avanço liberal sobre as instituições, como no caso da saúde, por exemplo, unifica o partido a partir de um elemento ideológico comum, a intervenção do Estado na vida privada do cidadão ou a socialização através do Estado dos ganhos particulares do indivíduo.

Do outro lado, os prognósticos não são bons para os democratas. Afinal, as eleições de meio de segundo mandato costumam ser as piores para o presidente que fica oito anos na Casa Branca.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A miragem da nova classe média latino-americana

Em artigo publicado no Project Syndicate, ex-economista-chefe do Banco Central argentino questiona o sucesso da elevação recente da renda no continente. Para Yeyati, a provisão deficiente de bens públicos é o outro lado da moeda da expansão econômica na região.

O ex-economista-chefe do Banco Central Argentino Eduardo Levy Yeyati publicou, no último dia 25, no site do Project Syndicate, uma análise bastante questionadora dos ganhos na elevação da renda ocorrida recentemente no contexto latino-americano. Segundo ele, ganhos de renda não devem ser tomados necessariamente como aumento do bem-estar da população.

De acordo com o economista, hoje espera-se que novas 400 milhões de pessoas chegarão à classe média no mundo até 2020, somando-se às 1.8 bilhão de pessoas com esse nível de renda no planeta. Mesmo que a ampla maioria dessa nova classe média viva na Ásia, a América Latina também faz sua contribuição. Entre 2003 e 2009, por exemplo, segundo Yeyati, a classe média latino-americana cresceu em 152 milhões de pessoas, totalizando 30% da população no continente.

Tal transformação econômica tem sido apresentada, para o ex-dirigente do Banco Central argentino, como uma prova do sucesso das políticas expansionistas da última década. Entretanto, mesmo que medidas de redução da pobreza e diminuição das desigualdades devam ser exaltadas, os ganhos de bem-estar proporcionados devem ser vistos com cautela.

Pelo menos três argumentos sustentam uma visão mais cuidadosa. Em primeiro lugar, é preciso atentar para a explosão do consumo, em relação à poupança da população. Se o ganho de renda se transforma em boa parte em consumo e pouco em poupança, o sistema fica muito dependente de um ritmo intenso de expansão. Nesse contexto, quando vier a retranca, famílias inteiras podem voltar ao estado precário anterior. Se não houver poupança, os ganhos podem ser fulgazes.

Além disso, como sugere um estudo do Banco Mundial, famílias de renda baixa e média, especialmente na Argentina e no Brasil, estão consumindo bens com alta taxa de depreciação, como televisores e carros. Tais orçamentos familiares, segundo Yeyati, são particularmente vulneráveis se financiados por crédito bancário. Se o consumo cresce mais rápido que os ganhos, e os débitos a serem financiados se tornam cada vez maiores, orçamentos familiares podem acabar em uma situação pior do que antes da elevação da renda.

Finalmente, o talvez mais importante motivo para a cautela diz respeito às dúvidas sobre a elevação do bem-estar da população. Como diria Amartya Sen, não se trata somente de renda. Na mesma linha do economista indiano, Yeyati sugere que elevações de renda não devem ser tomadas necessariamente como aumento na qualidade de vida da população. Afinal, o mesmo trabalhador de classe média que hoje desfruta de uma renda maior, enfrenta os engarrafamentos gigantescos e os péssimos sistemas de transporte público das grandes cidades da região. Ele adquire planos de saúde para fugir do precário atendimento médico, dos sistemas públicos de saúde no continente, e paga pela educação dos filhos em escolas particulares, fugindo das instalações mal cuidadas e professores mal pagos dos sistemas educacionais latino-americanos, com algumas poucas exceções.

Para Yeyati, a provisão deficiente de bens públicos nas sociedades latino-americanas, como educação, saúde e segurança, é, nesse sentido, o outro lado da moeda da expansão econômica na região. Nesse contexto, subsídios e transferências estatais impulsionam ganhos privados de renda, inserindo novos consumidores no mercado capitalista do continente. Ao mesmo tempo, a permanência da incapacidade do Estado de prover bens públicos dificulta a transformação desses mesmos ganhos de renda em real elevação na qualidade de vida da população. Ou seja, no fim, ganha muito o mercado, um pouco o cidadão.
the welfare gains associated with this performance may prove to be weaker than hoped.
Read more at http://www.project-syndicate.org/commentary/the-illusion-of-emerging-countries--growing-middle-classes-by-eduardo-l--yeyati#bf3M5g8Hu85dL9mM.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A aventura do desenvolvimento

Morte de Marshall Berman, autor do clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, traz reflexões sobre o processo brasileiro de modernização forçada.

Morreu no último dia 11 de setembro, em Nova York, o filósofo marxista, professor de Ciência Política nas universidades Harvard e Columbia, Marshall Berman. Autor do best-seller Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade, publicado pela Companhia das Letras no Brasil no início dos anos 1980, Berman deixa um legado intelectual de forte conotação humanística e marcado por uma crítica cultural poderosa, que desvela processos como aqueles, por exemplo, embutidos no moderno desenvolvimento social e econômico brasileiro.

Afinal, como ressalta Perry Anderson, em resenha publicada na revista britânica New Left Review, em 1984, Tudo que é sólido desmancha no ar ressalta uma noção de "modernidade" como uma "experiência compartilhada". Nesse sentido, ser moderno é estar em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo, mas também destruição de tudo que temos, sabemos e somos. Trata-se de um paradoxo que une os homens, uma união de desunião, uma unidade de desunidade, que nos coloca a todos em meio ao mal-estar da constante desintegração e renovação, luta e contradição, ambiguidade e angústia.

O que gera tudo isso? Para Berman, uma série de processos históricos sociais como as descobertas científicas, as reviravoltas da economia industrial, as transformações demográficas, a expansão urbana, os Estados nacionais, os movimentos de massa etc., todos concebidos, em última instância, no centro do mercado global capitalista, sempre em expansão, em constantemente ebulição. Nesse ambiente, surge uma enorme variedade de visões e ideias que colocam a todos como sujeitos e objetos da modernização, com o poder de transformar o mundo que transforma a todos, com o poder de pensar saídas, não importa o caos. Nesse sentido dialético, a modernidade não é vista como um processo econômico ou cultural, mas uma experiência histórica mediadora das relações entre os homens.

A partir dessa noção, foi possível para Berman, como bem sugere Perry Anderson, analisar a tensão existente entre "modernização" e "modernismo", tendo o "desenvolvimento" como elo de ligação entre os termos. Nesse sentido, o "desenvolvimento" é visto de duas maneiras. Por um lado, como um objetivo gigantesco de transformação da sociedade no contexto do mercado global capitalista, ou seja, o "desenvolvimento econômico". Por outro, uma transformação subjetiva engrandecedora do indivíduo, uma experiência de desenvolvimento pessoal, elevadora até mesmo da experiência humana na Terra.

Segundo Berman, a combinação dessas duas noções de desenvolvimento, no contexto compulsivo do mercado global capitalista, põe o indíviduo moderno em uma tensão permanente. Se, por um lado, foram postos abaixo o confinamento e as restrições do feudalismo, o imobilismo social e a tradição enclausurada, por meio de um imenso processo de destruição cultural, de hábitos e costumes previamente existentes, os mesmos processos suscitaram, por outro lado, uma sociedade brutalmente alienada e individualizada, calcada na exploração econômica e na indiferença social, com o poder de destruir qualquer valor cultural ou político criado por esta mesma sociedade, de modo cada vez mais rápido.

Com base em tal interpretação do desenvolvimento histórico moderno, Marshal Berman ressalta em sua obra pelo menos duas preocupações fundamentais, interligadas e particularmente interessantes na interpretação histórica do desenvolvimento (econômico) brasileiro. A primeira é com os processos forçados de modernização de cima para baixo, onde os Estados nacionais assumem papel de gerentes dos interesses econômicos, papel este legitimado pelo discurso democrático e calcado na alienação política das massas. A segunda é com uma visão de modernidade, para o bem ou para o mal, concebida como um monolito, como uma realidade incapaz de ser (politicamente) moldada ou modificada pelo cidadão.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Editora lança "O Brasil depois da Guerra Fria" na versão eBook

Obra está disponível para download no site da Livraria Cultura.

A Editora Apicuri acaba de lançar "O Brasil depois da Guerra Fria: Como a democracia transformou o país na virada do século" em versão eBook. Produzido em formato ePub, o livro eletrônico custa R$ 14 e é compatível com os aparelhos Android, iPhone, iPad, eReader e os sistemas OSX e Windows. Para o leitor, basta baixar gratuitamente o aplicativo de leitura Kobo, da Livraria Cultura.

Veja abaixo os comentários, sobre a obra, de Gustavo Franco, Moises Naim, Arthur Dapieve, entre outros:

“1989 é o assunto central desse precioso livro. Diferentemente de 1968, que se esgota em si mesmo, 1989 é o verdadeiro começo do século XXI. Ituassu nos revela de forma impressionante como o nosso cotidiano em 2012 tinha acabado de ser descoberto em 1989, uma espécie de revelação, depois de uma página virada. Na verdade, são diversas páginas arrancadas do livro: o socialismo ruiu, com toda a sua carga simbólica. No Brasil, verifica-se o colapso do desenvolvimentismo inflacionista e uma eleição presidencial que se repete desde então, onde se mesclam o velho e o novo e se inicia o debate sobre inflação, reformas, abertura, globalização e o tamanho do Estado. É possível dizer, conforme se vê pela crônica de 1989, que ali começou um novo ciclo, para o qual não parece haver desfecho. O livro de Arthur Ituassu é um raro e belo enunciado das origens esquecidas de nossos dilemas contemporâneos”, Gustavo H.B. Franco, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, presidente do Banco Central do Brasil entre 1997 e 1999.

“O mundo mudou em 1989, junto com ele o Brasil. Enquanto muito já foi escrito sobre as transformações globais geradas pelos eventos daquele ano, pouco se encontra sobre o impacto dessas mudanças no Brasil. Arthur Ituassu preenche essa lacuna com um livro brilhante, que se tornará referência obrigatória no tema", Moises Naim, pesquisador no Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, colunista de Mundo da Folha de São Paulo.

"Com base em meticulosa pesquisa nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, Arthur Ituassu mostra como 1989 foi um ano de crise e de oportunidade, no exterior e no Brasil. A queda do Muro de Berlim marcou o colapso dos regimes comunistas tutelados pela URSS e ofereceu a chance de os países do Leste europeu recuperarem suas identidades. A primeira eleição presidencial brasileira em um quarto de século assinalou não só o fim da ditadura implantada em 1964, mas também e sobretudo a falência do modelo isolacionista de (sub)desenvolvimento, além do início de um debate sobre o nível desejável de intervenção do Estado na economia. O mundo atingia um grau de interdependência – a expressão “globalização” logo se tornou pejorativa – inédito até então. Ituassu explica, sem recair em qualquer forma de reducionismo maniqueísta, como começou em 1989 o lento movimento de abertura do Brasil às nações amigas, que percorreu e percorre os governos Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma", Arthur Dapieve, jornalista, editor, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

“Para os que testemunharam o período, o livro de Arthur Ituassu é um generoso convite a rever esse tempo com suas múltiplas facetas e inacreditável potencial de mudança. Para os que por sua tenra idade ainda não acompanhavam as notícias ou para os que ainda nem faziam parte desse tempo, o livro é uma apresentação abrangente e instigante do cenário nacional e internacional da época. Para todos, uma oportunidade de pensar sobre o passado, o presente e o futuro do país”, Letícia Pinheiro, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.

"Este livro reúne e comenta artigos publicados na imprensa brasileira, em 1989, o ano da virada, no Brasil e no mundo. Faz o levantamento dos temas que preocupavam políticos e analistas naquela época – a abertura econômica, o fim da Guerra Fria, a mudança no papel do Estado, a integração do Brasil no cenário mundial. É impressionante como estes comentadores, políticos e jornalistas, não conseguiram antecipar nada do cenário das duas décadas seguintes – a perda das ilusões, os conflitos gerados pela força crescente dos fundamentalismos, a destruição das Torres Gêmeas, o declínio da Europa. Estreiteza de visão de tantos analistas? Ou será que a imprevisibilidade faz parte da natureza das coisas políticas?", Eduardo Jardim, professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, autor de Hannah Arendt, pensadora da crise e de um novo início.

"Em O Brasil depois da Guerra Fria, Arthur Ituassu oferece ao leitor que se viu envolvido pelo turbilhão de acontecimentos dos últimos anos do século XX a oportunidade de refletir sobre as transformações que atingiram o país em seu processo de redemocratização, em meio às mudanças que sacudiram o mundo. O livro é uma ferramenta fundamental também para que estudantes e jovens profissionais possam compreender os novos desafios que envolvem a consolidação da democracia política no país e sua integração em uma economia em que, cada vez mais, decisões locais terão repercussões planetárias", Mauro Silveira, jornalista e professor da PUC-Rio.

"Arthur Ituassu combina a formação acadêmica sólida em política e relações internacionais com a experiência jornalística para narrar, com maestria, as profundas transformações ocorridas no Brasil e no mundo a partir de 1989, ano que marca a confluência de várias tendências e o início de tantas outras, todas moldando a vida política das nações. Eventos e processos complexos – a redemocratização no Brasil e os desafios da estabilidade econômica, a globalização econômica e o fim da Guerra Fria, a força das ideias em seu tempo – vão-se entrelaçando e compondo um quadro indispensável para entender o mundo contemporâneo”, Braz Baracuhy, acadêmico e diplomata brasileiro em Pequim.  

"História, economia, política e mídia se encontram neste cuidadoso paralelo entre o mundo renascido dos escombros da Guerra Fria e o Brasil ávido por reformar o Estado paquidérmico e a economia agonizante", Carlos Alexandre, Correio Braziliense.

"Um paralelo vívido e instigante das mudanças na economia e na política no Brasil e no mundo na última década do século XX que, como mostra o autor, ajudaram a definir o ambiente político-econômico atual", Fernando Scheller, O Estado de São Paulo, autor de Paquistão, viagem à terra dos puros

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Representação na linha de fogo

Nos próximos 120 dias, Congresso americano decidirá temas-chave da política nos EUA, com os piores índices de credibilidade da instituição nos últimos 20 anos.

Como mostra a análise de Mike Allen e Jim Vandehei, no Politico.com, além da intervenção na Síria, o Capitol terá que discutir, nos próximos meses, o orçamento da defesa, os gastos do governo Obama, a dívida interna, a sucessão no Banco Central, a questão da imigração e os custos e benefícios do Ato de Proteção e Cuidados Acessíveis ao Paciente (Patient Protection and Affordable Care Act), plano para a saúde pública americana lançado por Obama e conhecido como Obamacare.

Tanta responsabilidade, afirmam os autores, e um Congresso em tão baixa conta. Segundo uma pesquisa do Pew publicada no início do ano, apenas 23% dos americanos afirmam ter uma opinião positiva sobre o Capitol, o mais baixo índice nos últimos 20 anos. Como sugere o gráfico acima, entre 2009 e 2013 houve uma queda de credibilidade do Congresso americano em mais ou menos 25 pontos.

Na verdade, boa parte dos regimes democráticos experimentam, já há algum tempo, índices baixos de credibilidade das suas instituições. De acordo com o Eurobarômetro, em pesquisa de 1996, por exemplo, apenas 42% dos entrevistados na União Europeia confiavam em seus respectivos parlamentos e somente 39%, nos governos nacionais. Perguntados, na mesma pesquisa, sobre o grau de influência do cidadão nas decisões, 36% dos entrevistados responderam “não muita” e 38%, “nenhuma”.

No Brasil não ocorre diferente. Sondagem do Latinobarômetro afirma que, em 2010, apenas 43% dos brasileiros concordariam com a ideia de que "sem Congresso não há democracia". O índice foi, na época, o segundo pior entre todos os país da América Latina, três pontos apenas melhor que o do Equador (40%).

Na mesma direção, segundo o Latinobarometro, apenas 44% dos brasileiros concordariam em 2010 que "sem partidos não há democracia", o terceiro pior índice entre as nações latino-americanas, dois pontos apenas melhor que os números de Panamá e Equador.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Em torno da Síria

A quem interessa e não interessa uma intervenção.

A rede britânica de notícias BBC publicou no último dia 28, quarta-feira, em seu site, uma análise bastante completa sobre os impactos para o Oriente Médio de uma intervenção estrangeira no conflito sírio. Mais uma vez, como é de praxe, a região parece dividida. Segundo a BBC, os países favoráveis a uma intervenção no conflito são Turquia, Israel e Arábia Saudita. Os contrários seriam Irã, Iraque, Jordânia, Líbano e Egito.

Ancara vê com muito bons olhos a queda de Bashar al-Assad. Afinal, sua saída traria prejuízos à influência iraniana na Costa do Mediterrâneo, onde também atua o Hisbolá, milícia armada xiita ligada à Teerã que controla boa parte do Líbano. O chanceler turco declarou que as Forças Armadas do país estão prontas para se juntar a uma coalizão internacional mesmo sem o aval da ONU.

Como competidora também pela infuência na região, a Arábia Saudita também apóia a intervenção. Para Riad, qualquer movimento que contenha o avanço iraniano é visto como benéfico à manutenção do regime local.

No caso de Israel, o país já trava conflitos esporádicos com o Hisbolá e a Síria na sua fronteira Norte. Segundo a BBC, os israelenses já bombardearam a Síria três vezes somente este ano. A tensão envolve ainda as Colinas de Golã, território sírio ocupado por Israel. Uma intervenção contra o regime em Damasco pode gerar retaliação, o que já fez aumentar a procura por máscaras de gás entre a população israelense.

Por outro lado, o primeiro-ministro libanês declarou recentemente que uma intervenção na Síria "não serve à paz e à estabilidade na região". O Líbano talvez seja o país que mais sofre com os conflitos no Oriente Médio, seja com a influência da Síria e do Hisbolá, seja com o problema palestino-israelense. O país abriga o maior número de refugiados sírios desde o início dos confrontos em Damasco e duas bombas explodiram recentemente em seu território, matando 60 pessoas. Os atentados, presume-se, estão diretamente relacionados à violência na sua fronteira Leste.

A Jordânia também declarou oficialmente que não apóia a intervenção. Com meio milhão de refugiados sírios no país, o governo jordaniano quer evitar que o confronto na sua fronteira Norte se espalhe por seu território.

Teerã, no entanto, é quem tem se posicionado de forma mais agressiva contra qualquer intervenção estrangeira na Síria. Um diplomata iraniano na ONU alertou para as "sérias consequências" advindas de uma ação militar na região. O chanceler do país disse que quem de fato usou armas químicas contra a população foram os rebeldes.

Tendo a Síria na sua fronteira Oeste, o Iraque também é contra qualquer intervenção que possa desestabilziar ainda mais o país. O primeiro-ministro Nuri al-Maliki afirmou que tem esperança numa "solução política" para o conflito.

Com relação ao Cairo, o presidente Mohamed Morsi, em junho, quando ainda estava no poder, rompeu relações com a Síria e defendeu que fosse implementada uma Zona de Exclusão Aérea no país. A Revolução Islâmica iraniana e a Irmandade Muçulmana são competidores pela influência no mundo árabe. Com o golpe no Egito, no entanto, o novo governo afirmou que "não há solução militar para o conflito sírio".

No plano mais geral, fica a certeza de que os problemas de tamanha instabilidade no Oriente Médio não serão desprezíveis. Com a crise no Egito, na Síria, as incertezas no Iraque, no Líbano e em Israel, que, nesse contexto, deve ter elevada sua tensão com os palestinos, o mundo pode esperar consequências. Afinal, para muita gente dentro e fora do Oriente Médio, é a intervenção ocidental que historicamente acirra e alimenta a divisão na região.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Globo, PT e Capilé

Fórum lança Projeto de Lei de "iniciativa popular" para regulamentar a Comunicação no Brasil.

Na última sexta-feira (23/08), a bancada do Partido dos Trabalhadores no Congresso Nacional deu início à mobilização em busca de 1,3 milhão de assinaturas em favor de um projeto de lei que regula a Comunicação no Brasil. O projeto é uma iniciativa do Fórum  Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a partir das propostas reunidas na 1a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009.

Apesar de sugerir uma discussão importante, a iniciativa mistura regulação de mercado com regulação de conteúdo, faz propostas burocratizantes e demonstra fraqueza de representação.

As propostas do FNDC e do PT estão no Caderno 1a Confecom: Conferência Nacional de Comunicação (2009). A proposta 712, por exemplo, foi produzida no âmbito dos Grupos de Trabalho do "Eixo Temático 1" da Conferência: "Produção de Conteúdo".

Aprovada na "Plenária Final", a PL 712 prevê a "[c]riação de Conselhos de Comunicação nos âmbitos federal, estaduais e municipais de caráter paritário com membros eleitos e estrutura de funcionamento para que possa acompanhar a execução das políticas públicas, que garantam o exercício pleno do direito humano à Comunicação. Entre suas atribuições, deve constar a regulação de conteúdo, políticas de concessões, mecanismos de distribuição, dentre outras" (p.188 do Caderno).

O problema de propostas como essa vai além do uso dos termos "regulação de conteúdo" e "Conselhos de Comunicação". Pior que isso, tal discurso tem restringido o debate público sobre a Comunicação no Brasil ao tema da censura.

Ao noticiar o ato em defesa do projeto do FNDC, que reuniu 100 pessoas no Congresso Nacional e nomes como os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ), Luiza Erundina (PSB-SP) e Nilmário Miranda (PT-MG), além do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), a Folha, por exemplo, reproduziu como contraponto declarações antigas do presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Daniel Slaviero, de que a ideia de "controle social da mídia" é "eufemismo para o cerceamento". Se o debate mais uma vez ficar restrito à discussão entre o controle e a censura, novamente irá por terra a chance de se discutir temas como os pontos de gargalo na distribuição e a centralização excessiva do mercado de comunicação no país.

No que diz respeito à representatividade das propostas presentes na chamada "Lei de Mídia Democrática", o documento da Confecom 2009 também é claro em mostrar sua fraqueza. Afinal, afirma logo na sua apresentação que "[a] Conferência foi convocada pelo Governo Federal, como parte da política de chamar a sociedade civil organizada para debater políticas públicas que interessam à cidadania". Ou seja, trata-se de uma iniciativa do governo com a "sociedade civil organizada". Além de várias instâncias federais, como o Ministério das Comunicações, da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Educação etc, participaram da Confecom 2009, entre outras agremiações, a Associação Brasileira de Canais Comunitários, a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o próprio Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e grupos como o INTERVOZES - Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Além disso, a mobilização também clama representatividade a partir de uma pesquisa publicada no último dia 18. A sondagem, produzida pela Fundação Perseu Abramo, "entidade ligada ao Partido dos Trabalhadores", segundo o próprio FNDC, afirma que 70% dos brasileiros querem regulação da mídia e 46% da população é favorável a que essa regulamentação seja definida e fiscalizada através do chamado “controle social”, por um “órgão ou conselho que represente a sociedade”.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Um buraco negro político

Consequências da tragédia no Egito.

O pior ainda estava por vir. No fim de julho, quando Javier Solana publicou o artigo "The Middle East Turmoil Trap", no site do Project Syndicate, o tema ainda era o golpe militar contra o presidente Mohammed Morsi, deposto no dia 3. Ou seja, nada perto da brutal repressão contra os partidários de Morsi, em maior parte ligados à Irmandade Muçulmana, e o subsequente estado de emergência, em 14 de agosto.

Se os prognósticos de Solana no artigo já eram preocupantes, pode-se imaginar como não ficam depois da absurda violência perpetrada pelo governo egípcio contra os militantes islâmicos, que fez com que os problemas no Egito explodissem, de modo que seus efeitos serão sentidos muito além das fronteiras do país de 85 milhões de habitantes.

Com uma sociedade dilacerada no que diz respeito à legitimidade do poder político e uma economia em frangalhos, o comportamento do governo interino no Egito favorece o presidente sírio Bashar al-Asssad no conflito contra os rebeldes. Bashar al-Assad luta para manter sua ditadura secular e nacionalista, seguindo a linha do ex-presidente egípcio Hosni Mubarak (e do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein).

Mubarak ficou 30 anos no poder no Cairo, entre 1981 e 2011. Nesse período, com o apoio maciço de Washington, levou à frente inúmeras táticas de repressão aos islâmicos no país, em especial à Irmandade, com a chancela dos governos na Casa Branca e um estado de emergência constante. Não à toa, islâmicos egípcios sempre estiveram na vanguarda do terrorismo internacional, inclusive com participação ativa de militantes e intelectuais radicais na al-Qaeda.

Um exemplo disso é Ayman al-Zawahiri, teólogo egípcio islâmico, líder da al-Qaeda, procurado pelos Estados Unidos. Por informações sobre ele, o Departamento de Estado americano oferece US$ 25 milhões. Al-Zawahiri segue, na verdade, uma longa tradição de pensadores islâmicos radicais, onde se inclui o fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan-al Banna (1906-1949), discípulo do sírio Rashid Rida, que foi herdeiro espiritual de Mohammed ibn Abd al-Wahhab, o fundador do wahhabismo, seita na qual Osama bin Laden se formou na Arábia Saudita. Não será surpresa se a volta da repressão à Irmandade Muçulmana no Egito vier acompanhada de um recrudescimento do terrorismo global.

Da mesma forma, a situação no Egito também envolve, claro, as relações entre Israel e palestinos. Um dos grandes aliados da Irmandade Muçulmana é o Hamas, que tem forte presença na Faixa de Gaza, na fronteira egípcia. Assim, é pouco provável que o caos no Cairo não respingue sobre as primeiras negociações de paz entre Israel e palestinos nos últimos cinco anos, que ocorrem neste momento em Jerusalém.

A queda de Morsi retirou o apoio do Egito aos palestinos nas relações com Israel, mas, mesmo assim, é difícil achar que o governo israelense ganha com tamanha instabilidade nas suas fronteiras.

A divisão egípcia também afeta as monarquias tradicionais do Oriente Médio. Os governos de Arábia Saudita e Emirados Árabes, preocupados com o radicalismo islâmico interno, foram rápidos em dar apoio, inclusive financeiro, ao primeiro-ministro interino Hazem Beblawi, após o golpe de julho. Tal ajuda pode sair mais cara após a violência recente contra os islâmicos no Egito.

O novo presidente iraniano, Hassan Rouhani, é outro que sofre com a tensão. Suas sinalizações moderadas devem sofrer elevada resistência interna se forem vistas como deferência a quem indiretamente apóia e sempre apoiou a repressão aos islâmicos no Cairo.

Como se não bastasse, também a Turquia é afetada com a instabilidade no Nilo. Não à toa, o primeiro-ministro Recep Erdogan se pronunciou com rapidez sobre a violência no Egito, pedindo das partes cessar-fogo e negociações.

Com os problemas no Egito, o governo turco tem seus planos de liderança para a região atrapalhados. Ancara tem se proclamado como um modelo de convivência entre a democracia e o islamismo na região. Com o racha no Cairo, como o próprio Erdogan prevê em seu discurso, o relativo sucesso do modelo turco não deve escapar de novos questionamentos, internos e externos.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Em má conta

Relatório do Pew Research Center mostra insatisfação do público americano com a qualidade do jornalismo nos Estados Unidos.

Publicado na mesma semana da venda do jornal Washington Post a Jeff Bezos, fundador da Amazon, por 250 milhões de dólares, novo estudo do Pew Research Center apresenta uma visão bastante crítica sobre o jornalismo produzido nos Estados Unidos. Apesar de ressaltar a importância da prática jornalística para a política e a sociedade, o público entrevistado para o relatório avalia duramente o desempenho das organizações de notícias em temas-chave do jornalismo como precisão, independência e equilíbrio.

Segundo o relatório da pesquisa, produzida pelo Pew Research Center for the People and the Press e divulgada no último dia 8 de agosto, 65% dos entrevistados afirmaram que o jornalismo americano se pauta, em geral, por assuntos sem importância, 67% disseram que as matérias são normalmente imprecisas, 71% acreditam que as organizações de notícias em geral tentam encobrir seus erros, em vez de assumi-los, 75% creem que o jornalismo americano é normalmente influenciado por pessoas ou organizações poderosas, 76% afirmaram que as notícias em geral são tendenciosas, 58% disseram que as matérias são politicamente enviezadas e 59% acham que o jornalismo não se importa com as pessoas sobre as quais produz reportagens. Segundo o Pew, esses índices vêm piorando desde o início do acompanhamento do tema pelo instituto, em 1985.

Ainda sobre as críticas, a pesquisa do Pew afirma que aqueles que citam a internet como a principal fonte de informação tendem a ser mais críticos da imprensa do que aqueles que não têm a rede como locus principal para se manterem informados. Dentre aqueles que mais usam a internet em busca de notícias, 65% acham que as matérias produzidas pela mídia tradicional são politicamente enviezadas, 73% percebem a imprensa muito voltada para assuntos sem importância, 81% acreditam que o jornalismo americano é influenciado por pessoas ou organizações poderosas, 83% afirmaram que a imprensa em geral favorece um lado da história e 68% disseram que as organizações de notícias tentam, em geral, encobrir seus erros, em vez de assumi-los.

Nesse terreno da WWW, o relatório do Pew ressalta que a internet é hoje a principal fonte de notícias nacionais e internacionais para aqueles com menos de 50 anos. De fato, segundo a pesquisa, quanto mais nova a faixa etária, mais a internet se torna importante. Na faixa etária de 18 a 29 anos, por exemplo, 71% dos entrevistados têm a internet como principal fonte de informação e notícias. Na média geral, no entanto, a televisão ainda é o meio preferido de informação (69%), seguida da internet (50%), dos jornais impressos (28%) e do rádio (23%) - a pesquisa permite que os entrevistados escolham até duas mídias como principais fontes de informação e notícias.

A boa nova para o jornalismo, ao menos o americano, é que o público parece manter uma visão positiva sobre o poder fiscalizatório da imprensa sobre a política e os políticos (watchdog role). Segundo a pesquisa, 68% dos entrevistados afirmam que o jornalismo evita que as lideranças políticas façam o que não devem - o índice era de 67% em 1985. Além disso, uma pequena maioria dos entrevistados (54%) também afirma que os jornalistas são mais importantes hoje do que no passado porque ajudam as pessoas a dar um sentido à enorme quantidade de informações disponíveis na internet.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Nem tão novo assim


Como Marcelo Freixo usou o Twitter na campanha para a Prefeitura do Rio em 2012.

Pesquisa de estreia do COMP – Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Internet da PUC-Rio – avaliou 207 mensagens postadas pela conta @MarceloFreixo nos últimos 15 dias antes do primeiro turno das eleições de 2012 para a Prefeitura da cidade. Segundo os resultados iniciais da análise, Freixo utilizou o potencial interativo da ferramenta, mas priorizou, ao menos no microblog e nesta conta em específico, uma comunicação política mais voltada a promover sua campanha, pouco disposta ao debate em torno de suas posições e os problemas da cidade.

Seguindo uma metodologia desenvolvida no PONTE – Grupo de Pesquisa em Políticas e Novas Tecnologias da Universidade Federal do Ceará –, as mensagens foram classificadas em cinco categorias: 1) promoção de ideias; 2) promoção de eventos; 3) campanha negativa; 4) mobilização e engajamento; e 5) alheias à política.

As postagens classificadas como "promoção de ideias" foram aquelas em que o candidato apresentou textos e documentos temáticos, material pessoal de campanha, projetos políticos, defendeu ideais. A rubrica "promoção de eventos" reúne mensagens postadas no Twitter em que o político informou sua agenda de atividades e convidou o público para eventos específicos em que estaria presente, sempre incentivando o compartilhamento das informações nas redes sociais.

As mensagens que compõem o conjunto "campanha negativa" são aquelas em que o perfil critica ações do adversário, trazendo à tona matérias, fatos ou qualquer outra evidência que sugira, por exemplo, casos de corrupção envolvendo um político ou partido. Além disso, em situação contrária, estão aqui também as mensagens nas quais o candidato se defende de campanhas negativas realizadas pelos adversários, veiculadas na mídia ou mesmo no próprio Twitter.

As mensagens de "mobilização e engajamento" incentivam os partidários do candidato a ajudar na campanha. Promovem o compartilhamento de mensagens ou a utilização de hashtags favoráveis. As mensagens "alheias à política" de Marcelo Freixo no Twitter, ou sem classificação específica, são aquelas em que o político manteve contato com amigos pessoais e familiares através do microblog, algo, claro, não necessariamente aleatório ou desprovido de conteúdo político.

Após a classificação por assunto, as mensagens foram categorizados em três grupos: "tweets", "retweets" ou "conversas", no intuito de se analisar o grau de interatividade da comunicação ali estabelecida. Como se sabe, o "tweet" é a publicação feita originalmente pelo prório usuário enquanto o "retweet" faz com que seus seguidores recebam algo que você recebeu. Por fim, na categoria "conversas" foram consideradas as respostas que Freixo deu a perguntas e observações vindas do público no Twitter.

Os primeiros resultados da pesquisa podem ser vistos nas Tabela 1 e 2 abaixo. A segunda série ilustra o cruzamento das categorias.


Tabela 1
Assunto
Nº de tweets
Porcentagem
promoção de ideias
11
5,3%
campanha negativa
24
11,6%
promoção de eventos
60
29%
mobilização e engajamento
65
31,4%
alheias à política
47
22,7%
Total:
207
100%


Tabela 2


     tweets
    retweets
   conversas
       total
           %
promoção de ideias
1
3
7
11
5,3%
campanha negativa
3
6
15
24
11,6%
promoção de eventos
20
12
28
60
29%
mobilização,  engajamento
18
23
24
65
31,4%
alheio à política
4
10
33
47
22,7%

Total

46
54
107
207
100%

%

22,2% 

26%
51,6%
100%


Com isso, a conclusão inicial da análise é a de que a campanha de Marcelo Freixo no Twitter para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2012 priorizou tentativas de mobilização e engajamento de eleitores e a divulgação de eventos da campanha. Apesar de apresentar um alto grau de interação com o público, seja respondendo a perguntas diretas ou retweetando mensagens, o perfil de Marcelo Freixo no Twitter durante a campanha mostrou baixo comprometimento com a divulgação de planos do candidato e o debate sobre os problemas da cidade, não contemplando assim o potencial democrático que a literatura especializada sugere para o uso político da internet.

Esta pesquisa foi desenvolvida por Camila Soluri e Taíse Parente sob a orientação de Arthur Ituassu com recursos do CNPq e será posteriormente publicada completa na forma de artigo científico. O trabalho se põe em débito com o livro Do clique à urna: internet, redes sociais e eleições no Brasil (disponível na internet em formato epub), organizado por Francisco Paulo Jamil Almeida Marques, Rafael Cardoso Sampaio e Camilo Aggio, todos ligados ao Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital (CEADD-FACOM/UFBA). Em especial, a pesquisa está em dívida com o trabalho "Estratégias de comunicação política on-line: uma análise do perfil de José Serra no Twitter", de Francisco Paulo Jamil Almeida Marques, Fernando Wisse Oliveira Silva e Nina Ribeiro Matos, presente no livro comentado acima.