quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Afinal, quem é Barack Obama?

"Neither a cold-blooded realist nor a bleeding-heart idealist". Em uma excelente análise publicada na última edição da Foreign Policy, Walter Russell Mead decifra o enigma Barack Obama. Por meio de seu modelo de quatro representações da política externa americana - jeffersoniana, hamiltoniana, wilsoniana e jacksoniana - expostas por ele no excelente Special Providence, publicado pela Routledge, em 2002, nos Estados Unidos, Mead retratou o atual presidente americano como um jeffersoniano clássico. O autor aborda a situação e os dilemas enfrentados por Barack Obama e expõe o conflito entre as mentalidades wilsoniana e jeffersoniana, tradicionalmente dominantes no Partido Democrata. Segundo Mead, o embate tende a assombrar os quatro ou oito anos da política externa de Barack Obama, e o fantasma é nada menos que outro presidente democrata: Jimmy Carter, que ficou apenas um mandato na Casa Branca.
Como em trabalhos anteriores, Mead acerta na mosca ao buscar na tradição política americana o caminho para o entendimento da história, incluindo a presente. Tentei o mesmo em um texto publicado na revista Contexto Internacional, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, com base em dissertação de mestrado defendida na instituição. No artigo intitulado Idéias e Política Externa Americana procurei mostrar que os primeiros passos para valer dos Estados Unidos no ambiente internacional, vale dizer da intervenção na Cuba espanhola, em 1898, até a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial em 1914, foram em geral informados por ideias tradicionais da política americana como "missão", "missão única", "auto-governância", "a questão do inimigo" e até mesmo o "isolamento", noções presentes no pensamento dos Founding Fathers daquela nação e reinterpretadas ou "reinventadas" no tempo histórico. É interessante perceber que, assim, a política externa americana pode ser vista como um prolongamento da própria Revolução Americana de 1776.
  No artigo da Foreign Policy, Mead - que tem publicado no Brasil, pela Zahar, o ótimo Poder, Terror, Paz e Guerra, com prefácio e revisão de minha autoria - afirma que os presidentes americanos enxergam o mundo normalmente por meio do pensamento e da prática de quatro grandes políticos da história dos Estados Unidos: Alexander Hamilton, Woodrow Wilson, Thomas Jefferson e Andrew Jackson.
  Os hamiltonianos têm por base um caráter mais realista, defendem governos fortes que apoiem os interesses econômicos dos Estados Unidos no ambiente internacional. Wilsonianos gostam de promover a democracia e os direitos humanos no planeta. Os jacksonianos são os mais belicosos. Como bem retratou Mead: "Jacksonians are today's Fox News watchers. They are populists suspicious of Hamiltonian business links, Wilsonian do-gooding, and Jeffersonian weakness."
Jeffersonianos, como Barack Obama segundo Walter Russell Mead, são partidários da vida simples, de governos pequenos. Não gostam das máquinas públicas de guerra, de intervenções exageradas e muitos compromissos internacionais. Acham que a melhor política externa dos Estados Unidos é servir como exemplo para outras nações, construindo uma vida social justa, pacífica e livre. Os camponeses de A vila, de M. Night Shyamalan, são jeffersonianos típicos. Bem como foi a luta de Mark Twain contra a ocupação americana das Filipinas no final do século XIX, muito bem retratada em seu livro Patriotas e Traidores, publicado no Brasil pela Fundação Perseu Abramo.
Republicanos moderados tendem a ser hamiltonianos, os mais conservadores como Sarah Palin, jacksonianos. Mas George W. Bush, para Mead, tentou unir jacksonianos e wilsonianos. Da mesma forma, para o autor, Henry Kissinger e Richard Nixon tiveram muitos momentos jeffersonianos. Bill Clinton foi hamiltoniano e wilsoniano.
George W. Bush, de fato, tentou aliar jacksonianismo e wilsonianismo. Dizer que foi apenas jacksoniano é crer que o ex-presidente acreditava que havia armas de destruição de massa no Iraque quando a invasão, de fato, nunca teve esse objetivo estratégico, mas sim a transformação (wilsoniana) futura de um ambiente hostil em uma região de democracias e livre mercado. A última saída da insegurança, transformar o mundo, o desconhecido, em si mesmo.
Na verdade, é difícil nos Estados Unidos fugir do wilsonianismo e Woodrow Wilson foi o primeiro presidente que levou os americanos a uma guerra na Europa, coisa que Washington evitou durante a reação conservadora no velho continente à Revolução Francesa de 1789. Ou seja, não há conflito entre wilsonianismo e a belicosidade jacksoniana e, como certa vez me disse Stephen Rabe, historiador da Universidade do Texas, Woodrow Wilson é a quintessência do norte-americanismo. Nesse sentido, ao meu ver, George Bush de fato aliou wilsonianismo e jacksonianismo. O que houve foi que tal estratégia se mostrou um retumbante fracasso.
Com relação a Nixon e Kissinger, tema do sensacional livro homônimo de Robert Dallek, também publicado no Brasil pela Zahar, é difícil crer que dois personagens tão apaixonados pela geopolítica, ambos com pretensões grandiosas de alcançar a paz mundial, possam ser caracterizados como jeffersonianos. Nesse ponto, Mead parece tentar de alguma forma livrar a barra das atrocidades que Richard Nixon e Henry Kissinger cometeram, no comando da Casa Branca, como o bombardeio do Natal.
Sobre Barack Obama, o atual presidente é um histórico opositor da Guerra do Iraque. Dessa maneira, Obama conseguiu reunir em sua volta os elementos do Partido Democrata ligados às questões de política externa que mais se opuseram ao conflito e mais se horrorizaram com as práticas do seu antessessor.
"Obama made opposition to the Iraq war a centerpiece of his eloquent campaign, drawing on arguments that echoed U.S. anti-war movements all the way back to Henry David Thoreau's opposition to the Mexican-American War", escreveu Mead. 
Segundo o autor, como Jimmy Carter nos anos 1970, Obama vem do velho jeffersonianismo do Partido Democrata. O objetivo de sua política externa, assim, é o de reduzir os custos e riscos internacionais dos Estados Unidos, limitando os compromissos de Washington ao mínimo possível.
"He is a believer in the notion that the United States can best spread democracy and support peace by becoming an example of democracy at home and moderation abroad", afirma Walter Russell Mead.
Como explica o autor, jeffersonianos desse tipo acreditam que o aumento dos compromissos externos de uma nação são uma ameaça ao regime democrático. Orçamentos militares estratosféricos, como o norte-americano atual, desvia recursos que deveriam estar sendo empregados em prol da prosperidade e da justiça social interna; relações próximas com governos corruptos e tirânicos envolvem os Estados Unidos em alianças sujas e cínicas; questões de segurança nacional ameaçam as liberdades civis e geram lobbies militaristas de grandes companhias atrás dos contratos com as agências de Defesa. É nesse sentido a ênfase de Obama nos temas internos, como a propagada reforma no sistema de saúde.
  Com isso, são três os desafios que o jeffersonianismo de Obama terá pela frente: 1) a real capacidade de desengajamento dos Estados Unidos em um contexto internacionalizado como o atual; 2) não demonstrar fraqueza, tanto para o ambiente interno quanto para o externo; e 3) o lado wilsoniano do presidente e do Partido Democrata.
"It is hard to reconcile the transcendent Wilsonian vision of America's future with a foreign policy based on dirty compromises with nasty regimes. If the government should use its power and resources to help the poor and the victims of injustice at home, shouldn't it do something when people overseas face extreme injustice and extreme peril?", pergunta Mead. O governo Barack Obama não pode facilmente abandonar a agenda dos direitos humanos, por exemplo. O perigo é estar indeciso em meio ao sóbrio e limitado realismo de Jefferson e o caráter transformador missionário americano de Woodrow Wilson.
Não à toa, Walter Russell Mead lembra de Carter. Um dos créditos mais infelizes que a Presidência Jimmy Carter ganhou foi o de possibilitar a Revolução Islâmica no Irã, em 1979. Para terminar, o autor lembra do célebre Ascensão e Queda das Grandes Potências, o clássico de Paul Kennedy. Jeffersonianos como Barack Obama são os melhores para evitar o que Paul Kennedy chamou de imperial overstrecht. "If Obama's foreign policy collapses, it will be even more difficult for future presidents to chart a prudent and cautious course through the rough seas ahead".

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Frost/Nixon e Dallek


Chegou às lojas brasileiras o DVD do sensacional Frost/Nixon, de Ron Howard. O filme tem por base a peça do escritor britânico Peter Morgan sobre as entrevistas que Richard Nixon concedeu ao jornalista, também britânico, David Frost, em 1977. As entrevistas foram transmitidas pela televisão americana divididas em quatro programas. No último, dedicado ao caso Watergate, Nixon admite pela primeira vez desde a renúncia que teve uma participação condenável no caso. Mais que isso, expõe claramente sua filosofia de poder. "When the president does it, that means that it is not illegal", chega a afirmar.

O primeiro episódio das entrevistas teve uma audiência de 45 milhões de telespectadores. Supostamente, nenhuma outra entrevista política jamais teve tanta audiência. Nos EUA, há também o DVD das entrevistas, como foram ao ar. Para acompanhar, vale a pena ter ao lado o sensacional Nixon and Kissinger de Robert Dallek, lançado no Brasil pela Zahar ano passado. Com edição, notas e revisão minhas.