sexta-feira, 25 de março de 2011

O losango social, a pauta política e o custo da democracia no Brasil

Juntas, duas pesquisas recém-divulgadas na imprensa são bastante representativas da transformação pela qual passa a sociedade brasileira e da perspectiva positiva com relação ao seu futuro, inclusive político.

A primeira delas mostra graficamente uma verdadeira quebra de paradigma. Segundo o relatório Observador Brasil 2011, a velha pirâmide apresentada nas escolas, a muitas gerações, como retrato fiel das classes sociais brasileiras, se transformou em um losango.

Isso porque, entre 2005 e 2009, 26 milhões de brasileiros deixaram as classes D e E e alcançaram a classe C, e mais 4 milhões atingiram as classes B e A. Além disso, somente em 2010, outros 19 milhões deixaram as classes D e E em direção à classe C, e novos 12 milhões chegaram às classes B e A. No ano passado, a renda familiar média mensal das classes A e B foi de R$ 2983,00, da classe C de R$ 1338,00 e das classes D e E de R$ 809.


Em números absolutos, o Brasil passou a ter em 2010 mais de 42 milhões de pessoas nas classes A e B, mais de 100 milhões na classe C e algo próximo de 48 milhões nas classes D e E. Apesar do número muito alto ainda de pessoas nas classes mais baixas, nota-se uma tendência clara de "classemedização" do país. Em 2005, havia algo em torno de 26 milhões nas classes A e B, 60 milhões na classe C e mais de 90 milhões nas classes D e E.

O losango, no entanto, resume uma transformação na renda que não tem sido acompanha pela melhoria, ao menos na mesma proporção, de outros pontos precários da organização social brasileira, em especial no que diz respeito ao gerenciamento da "coisa pública". O acesso à educação básica pública de qualidade ainda é problemático, bem como o atendimento público de saúde. A violência, apesar de alguns avanços, ainda compromete o bom andamento da vida social no país e o direito fundamental de buscar a justiça permanece assimétrico. Para não falar do crédito, que se mantém como um privilégio de custo alto e desigual no mercado brasileiro.

De fato, a discrepância entre a melhoria na questão da renda e a defasagem na provisão de bens públicos básicos para qualquer sociedade é produto da própria identidade política brasileira, que tradicional e historicamente prioriza as questões econômicas. Foi fácil constatar tal percepção em uma pesquisa recente que fiz. De 354 artigos e editoriais temáticos publicados nos jornais Folha de São Paulo e O Globo durante o período oficial de campanha que antecedeu o primeiro turno das eleições no ano passado, quase 20% foram voltados para o debate econômico. O percentual de textos que trataram da educação e cultura do país, por exemplo, não chegou a 10%. Saúde e saneamento apareceram apenas em 5% da amostragem.

É sobre este ponto que merece destaque uma outra pesquisa publicada recentemente pela Folha. Na sondagem, feita pelo Datafolha e cujo foco principal foi a popularidade da presidente Dilma Rousseff, chama a atenção a mudança, entre 2003, o início do governo Lula, e 2011, no que foi apontado como a pauta dos principais problemas do país. Há oito anos, figuravam entre as principais questões, para a amostra populacional consultada, o desemprego (31%), a fome e a miséria (22%) e a violência (18%). Este ano, os principais problemas apontados foram a saúde (31%), a violência (16%) e a educação (12%), três dos quatro bens públicos básicos que eu e meu colega Rodrigo de Almeida, em livro publicado em 2007, ressaltamos como merecedores de mais atenção.

Ou seja, além da tendência à "classemedização", pode estar se construindo um consenso que é preciso agora diversificar com mais ênfase a pauta política do país. Além disso, mesmo com a péssima imagem que notoriamente a política tem entre os brasileiros, também facilmente constatada no levantamento produzido a partir dos artigos e editoriais publicados na Folha e no Globo durante a campanha do ano passado, está claro que não é senão dos últimos 16 anos de democracia, mesmo com todos os seus percalços, a responsabilidade do amadurecimento social que o país vive hoje. A democracia custa caro, mas não há nada melhor para substituí-la.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A pendenga em torno dos direitos autorais

Perspectivas socializantes se aproveitam do debate gerado pela comunicação digital.

A ministra da Cultura Ana de Hollanda mal iniciou seu mandato e pegou uma batata quentíssima pela frente: a questão dos direitos autorais. A polêmica foi levantada a partir de três movimentos. Em primeiro lugar, o novo Ministério decidiu retomar os debates em torno da nova Lei do Direito Autoral, cujo anteprojeto proposto pela gestão anterior fora colocado em consulta pública até setembro do ano passado.

Em segundo lugar, a nova administração da pasta resolveu também retirar o logotipo da organização Creative Commons – que trabalha com uma forma de copyright mais flexível – do site do MinC. Além disso, contribuíram para colocar ainda mais lenha na fogueira a nomeação da advogada Márcia Barbosa, supostamente ligada ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), para a Diretoria de Direitos Intelectuais, bem como o comportamento e a destituição de Emir Sader, que fora nomeado para a presidência da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Sader, que chamou a ministra de "autista" em uma entrevista antes de tomar posse, nem chegou a ocupar o cargo que agora será do professor Wanderley Guilherme dos Santos.

Não há dúvida que as práticas legais e ilegais de distribuição, circulação e comercialização de propriedade intelectual via internet colocam o dedo na ferida das legislações autorais vigentes. A Grã-Bretanha, por exemplo, iniciou o debate público em torno de uma nova lei em fevereiro de 2006, pouco mais de um ano antes do Brasil.

Na ocasião, Andrew Gowers, nomeado pelo governo britânico para mapear a questão, afirmou sobre o debate: "Look at the debates that there have been on intellectual property since the arrival of the internet. They have been loud and shallow. They have been between people who say everything's free and you shouldn't pay for anything and people who say everything's mine, and you should pay for everything. And actually neither of them are right".

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Gowers produziu na época um relatório com algo em torno de 50 recomendações sobre a legislação autoral na nova era digital, todas com base no seguinte pressuposto: "Be flexible - within the law".

Polarizado, o debate se torna um caso clássico de "loose-loose situation", onde ninguém quer abrir mão das suas prerrogativas. De um lado, os que buscam mais flexibilidade, como prevê o sistema Creative Commons, por exemplo. Do outro, aqueles que defendem a propriedade do autor, a remuneração autoral e intelectual.

Certamente o ambiente de troca próprio da internet suscita a ideia de "flexibilidade" e isso pode gerar uma desatualização da legislação, o que minaria sua credibilidade. Ou seja, uma lei muito rígida e/ou muito defasada pode torná-la desacreditada e incentivar o desrespeito.

Da mesma forma, as tentativas de controle do copyright via tecnologia não parecem dar certo. Cada novo avanço no controle ou é rechaçado pelos consumidores, que vêm suas possibilidades de usufruto reduzidas, ou é rapidamente vencido pelos usuários mais experientes, que acabam por popularizar na própria rede a quebra às restrições impostas.

No entanto, junto a essa questão vários outros pontos estão sendo colocados "no mesmo barco" e que nada têm a ver com a internet. Por exemplo, a ideia de que o direito autoral "não é algo absoluto, devendo sofrer restrições em determinadas circunstâncias, especialmente quando o interesse público deve preponderar", como escreveu o professor Guilherme Carboni, na Folha. Ou seja, a perspectiva de que o direito autoral deve "dialogar com outros direitos fundamentais, como os direitos culturais, o direito do consumidor, o direito à educação e o direito ao acesso à informação e ao conhecimento".

Nesse contexto, as questões impostas pela comunicação digital ao direito autoral parecem estar sendo aproveitadas por algumas perspectivas em prol de uma certa "socialização" dos bens culturais. O cerne desse ponto, por exemplo, pode ser encontrado na polêmica sugestão feita pelo Ministério passado em torno da "licença não voluntária", que teoricamente outorgaria ao presidente da República o poder de conceder autorização de uso de obras privadas mesmo sem o consentimento do autor, como comentou Roberto Corrêa de Mello, também na Folha.

Oracomo definir o tal "interesse público"? Se obras podem ter suas patentes quebradas (mesmo que relativamente) em função dos direitos à cultura, à educação, ao acesso à informação e ao conhecimento, como garantir segurança jurídica ao autor?

Ninguém, claro, é contra o acesso à informação e ao conhecimento, mas cabe ao Estado, para tanto, garantir os meios para que os cidadãos possam ter acesso à cultura e não tomar posse dela para distribuí-la. Afinal, para que servem então os museus, as bibliotecas públicas, as fundações?

A posição é, inclusive, contraproducente. Apresenta-se como popular mas é, no cerne, elitista. Em um ambiente em que o autor não tem garantias jurídicas sobre a obra e tem arriscado o seu sustento, ficará a produção intelectual a cargo somente de quem não necessita dela para viver ou de financiamento prévio, por encomenda.

Portanto, não há dúvida que o debate sobre os direitos autorais é pertinente em meio aos desenvolvimentos da comunicação digital. A ideia de "flexibilização" não deve deixar de ser discutida. De preferência, afirma-se aqui, "flexibilização dentro da lei", com reforço na capacidade de empoderamento da legislação e de sua credibilidade, essencial em um terreno onde os controles via tecnologia se mostram invariavelmente ineficazes.

No entanto, uma lei mais flexível é diferente de uma lei que dá poderes ao Estado ou à qualquer autoridade de flexibilizar os direitos autorais quando achar conveniente. O velho não se torna novo apenas porque ganhou uma nova roupagem.