sexta-feira, 26 de agosto de 2011

11/09/2011: A vitória do Estado-nação e seus custos

O Estado e o ambiente internacional de Estados sobreviveram a mais uma crise, gerada há dez anos nos atentados de 11 de setembro de 2001. Por outro lado, o conflito intraislâmico entre radicais e moderados persiste e terá influência na construção dos regimes no Oriente Médio pós-Primavera Árabe. Além disso, os custos impostos à democracia e às instituições internacionais durante a última década estão longe de ser desprezíveis.

O Estado-nação venceu mais uma. Se houve qualquer dúvida sobre a capacidade de sobrevivência do Estado nacional e do ambiente internacional de Estados após os ataques do 11 de Setembro, que colocaram em cheque o paradigma da segurança internacional moderna – a deterrência ou dissuasão –, dez anos depois qualquer questionamento deste tipo se dissipou, como na verdade já havia afirmado o historiador Fred Halliday. Apesar do atrapalhado comportamento da administração George W. Bush no plano internacional, no contexto interno, pelo contrário, as estruturas de segurança e da inteligência americana se organizaram de maneira aparentemente eficiente de modo a conter, mas nunca a erradicar, a possibilidade de novos ataques.

No entanto, o conflito fundamental do "mundo islâmico" permanece e será de grande influência nos regimes pós-Primavera Árabe. Diferentemente do "conflito de civilizações" do conservador Samuel Huntington, o grande dilema colocado pelos atentados do 11 de Setembro aos países de maioria muçulmana foi intracivilizacional, ou seja, de uma pequeníssima minoria radical disposta a tomar o poder por meio da violência contra uma ampla maioria moderada. Sobre esse ponto, inclusive, vale ressaltar o papel de inúmeras organizações islâmicas nos Estados Unidos e espalhadas pelo mundo na luta contra a generalização, muitas vezes reforçada pelo mau jornalismo.

Dez anos depois dos atentados, o que se percebe é uma posição relativamente mais forte dos moderados frente a um enfraquecido radicalismo – onde se insere também a morte de Osama Bin Laden. Isso se torna ainda mais claro quando se nota o favoritismo político de partidos como o do Renascimento Islâmico, na Tunísia, e o da Liberdade e da Justiça, no Egito, ambos de tendência moderada. Como afirma William McCants, na Foreign Affairs, edição especial sobre os dez anos do 11 de Setembro, partidos islâmicos moderados, ou seja, aqueles que ao menos não se mostram dispostos a usar da violência para chegar ao poder, têm amplas chances também se houver eleições na Líbia, na Síria e mesmo no Iêmen. De que forma o Ocidente vai lidar com essas forças políticas será determinante para o conflito entre moderados e radicais no mundo islâmico e para a estabilidade política do Oriente Médio.

Por fim, apesar do Estado-nação ter se saído vitorioso de mais este desafio histórico, o mesmo não se pode dizer da democracia e das instituições internacionais. Com relação ao primeiro ponto, o uso assumido da tortura em Guantânamo e os custos materiais e civis impostos pelas estratégias de contenção são feridas abertas que atentam contra a estabilidade e a credibilidade das democracias no planeta. Da mesma forma, os desrespeitos sucessivos às decisões coletivas no plano das instituições internacionais enfraqueceram os regimes e as regras de convivência global, com consequências sérias ainda por serem plenamente compreendidas.  

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Entre o pragmatismo e os valores democráticos

Mais uma polêmica ronda o tratamento dado pela diplomacia brasileira a regimes duvidosos que habitam o cenário político internacional. Depois das questões envolvendo o Brasil e o regime iraniano, Brasília e o ditador líbio Muammar al-Gaddafi, durante a Presidência Lula, que tirou mais de uma foto de braços dados com Gaddafi, agora o Itamaraty sofre pressões e críticas internas e externas em função da posição brasileira no Conselho de Segurança sobre a Síria e o regime criminoso de Bashar al-Assad. Entre o realismo pragmático – que pede cautela e calcula os custos e benefícios da movimentação nesse terreno, em função do objetivo de aumento da influência nacional na governância internacional – e a defesa intransigente e puramente ideológica de valores democráticos na comunidade global, só quem sai perdendo é a credibilidade do país.

Junto com Índia e África do Sul, o Brasil defende a idéia de que o Conselho de Segurança dê mais tempo a Assad para que ele possa implementar reformas democráticas. Os três países enviaram recentemente uma delegação conjunta a Damasco e não endossaram as pressões de Estados Unidos, França e Inglaterra para que Assad deixe o poder ou para que o Conselho de Segurança tome medidas mais duras, como implementar sanções contra o regime sírio. O alto comissariado de Direitos Humanos da ONU afirma que os ataques à população síria podem ser considerados crimes contra a humanidade e mais de duas mil pessoas morreram desde que os levantes contra o regime começaram, por volta de meados de março.

A posição brasileira está correta no que diz respeito à questão das sanções ou de outros instrumentos de coerção que partem do Conselho de Segurança da ONU. Esses instrumentos são cercados de polêmicas quanto aos seus resultados. Uma boa parte da literatura sobre as sanções, por exemplo, afirma categoricamente que, no fim, quem sofre mesmo com elas é a população e não os regimes visados. Além disso, historicamente, as intervenções militares externas não têm se mostrado eficazes na proteção de civis e na garantia de estabilidade política e social futura. Este é ainda um terreno pantanoso das relações internacionais contemporâneas e toda cautela aqui é bem-vinda dado os resultados violentos que qualquer medida equivocada pode causar – a única exceção parece ser as Zonas de Exclusão Aérea (ZEAs), que têm funcionado na proteção de populações visadas por regimes opressores, como foi no Iraque e no caso recente da Líbia.

A posição brasileira também está correta de não endossar cegamente a defesa dos valores democráticos levada à frente pelas potências tradicionais. Trata-se de um discurso desgastado e repleto de incoerências históricas. Uma liderança emergente que aspira um posicionamento livre desses problemas faz bem em se manter distante também desse tipo de ação conjunta.

No entanto, a diplomacia brasileira erra feio e denigre a credibilidade do país ao não conseguir implementar uma ação imaginativa que possa escapar das amarras do pragmatismo calculista e das incoerências do discurso das grandes potências. Uma saída, por exemplo, poderia ser manter a posição cautelosa com relação a intervenções externas, que sempre foi uma característica da diplomacia brasileira, sem a implementação de alianças políticas, ao menos para esses casos específicos. A cautela, ainda, deveria ser acompanhada de forte discurso independente em prol dos valores democráticos reconhecendo inclusive, sempre nesses casos, acertos e déficits da própria democracia brasileira. Com isso, o país deixaria claro que não se aproveita dessas situações do cenário externo para implementar cálculos frios de aumento relativo de poder e reforçaria seu soft power no plano internacional, aproveitando inclusive a ocasião para debater sua própria democracia, o que nunca faz mal a ninguém. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Endividamento, consumismo e desigualdade de oportunidades no Brasil

Em artigo encomendado pela seção Comment is Free do jornal britânico The Guardian, editado por Jessica Reed, resolvemos tratar de três temas que, na minha opinião, se escondem por trás do recente sucesso econômico brasileiro, bastante comentado, em especial lá fora: o endividamento crescente das famílias, o consumismo desenfreado e a perene desigualdade de oportunidades na sociedade brasileira.


Com relação ao endividamento das famílias no Brasil, chamei a atenção para um relatório recente da Fecomercio. A pesquisa mostra que a taxa média de endividamento das famílias nas capitais brasileiras é hoje de 65%, chegando a 88% em Curitiba, por exemplo. Em Natal, apresenta o relatório, 40% da renda das famílias está hoje, em média, comprometida com dívidas. Em 2010, 10 estados brasileiros possuíam taxa média de endividamento das famílias acima de 70%. Até maio de 2011, o mesmo ocorria em 15 estados.


Sobre o consumismo, apontei para duas consequências negativas possíveis: a dependência da economia do alto consumo das famílias (e também do governo) e os riscos ao meio ambiente de uma prática de consumo industrial descontrolada. O Brasil hoje é o quinto maior mercado de carros do mundo e os engarrafamentos crescem em todas as grandes capitais do país. A expectativa é de que as famílias brasileiras consumam quase 2,5 trilhões de reais em 2011, um aumento de cerca de 250 bilhões de reais em relação ao ano passado.


Nesse sentido, chamei a atenção para a questão da obesidade. Em 2006, 11,4% da população, segundo o Ministério da Saúde, sofria com obesidade. Hoje esse número chega a 15%. Metade da população está acima do peso. Nos próximos dez anos, no ritmo atual, serão 60%.


No que diz respeito à desigualdade de oportunidades, ressaltei um relatório recente da OCDE, amplamente noticiado na imprensa brasileira, que avaliou estudantes de 65 países. O Brasil ficou em 53o lugar, com 401 pontos. Pior que isso, os estudantes das escolas particulares (onde estão somente 15% da população estudantil no país) fizeram em média 502 pontos, enquanto aqueles oriundos das escolas públicas (com exceção dos Caps federais) fizeram em média 387 pontos no exame.


Nesse sentido, sem deixar de reconhecer os avanços na redução da pobreza no país, no amadurecimento econômico e político no Brasil, afirmei que não se trata de ver as atuais transformações como um caminho para o Estado de bem-estar social, como muitos pensam na Europa e nos Estados Unidos. Trata-se de uma revolução capitalista. Uma transformação orientada pelo mercado numa sociedade industrial centralizada fortemente marcada pela burocracia e altamente motivada pelo consumo e pelo materialismo.


Para ler o artigo em inglês clique aqui.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Pluralismo, transparência e prestação de contas online podem mudar democracia brasileira

Depois de quatro dias de debates sobre internet e política na Casa do Saber, no Rio de Janeiro, a principal conclusão do curso foi a de que instituições virtuais específicas podem trazer amplos benefícios à democracia brasileira, em especial no que diz respeito ao pluralismo, à prestação de contas (accountability) e à transparência do Estado.

É claro, como foi discutido nos encontros, que a internet por si só não é necessariamente benéfica ou maléfica à democracia. Como foi visto, já é um consenso antigo da área o chamado "potencial vulnerável" da rede em relação ao aprimoramento democrático. Ou seja, tudo depende de efetiva "imaginação institucional", do grau e teor das iniciativas online.

No entanto, no que se refere aos "potenciais", estes são muitos. Afinal, os recursos comunicacionais da rede podem aumentar a transparência do Estado, aproximar o eleitor do representante político, potencializar a cobrança da sociedade, trazer novas formas de participação e deliberação à "esfera política"– para usar o termo clássico de Wilson Gomes –, facilitar a mobilização, equilibrar eleições e campanhas políticas e proporcionar um empoderamento relativo do cidadão nos processos decisórios. Além disso, e não menos importante, podem favorecer o pluralismo de agendas e enquadramentos no debate político.

Em termos mais gerais, uma das preocupações mais fortes da área aponta para a importâncias das iniciativas institucionais online como forma de resolver ou amenizar o documentado déficit de participação política que afeta as democracias liberais contemporâneas, como afirma novamente o professor Wilson Gomes no primeiro capítulo da obra Internet e participação política no Brasil, organizada pelo próprio, em conjunto com Rousiley Maia e Francisco Jamil Marques, e que preenche de forma importante um déficit de publicações em português sobre o tema.

No entanto, a questão do déficit de participação política não necessariamente deve ser pensada, em relação ao potencial da rede, apenas no sentido do aumento da participação direta e quicá do fim da representatividade, como foi muito comum na literatura da área nos anos 1990. Como afirma, novamente, Wilson Gomes, "há uma gigantesca diferença de dimensões e uma não menor diferença na complexidade dos problemas da vida pública que tornam inviável reproduzir as estruturas deliberativas e participativas da experiência comunitária antiga".

Nesse sentido, a idéia da participação política online não deve estar presa à utopia de um cidadão-total, devotado integralmente à participação política, nem mesmo à pretensão do fim dos regimes democráticos representativos, mas deve ser pensada como instrumento de redução do distanciamento entre o cidadão e o processo político decisório nas democracias modernas. Isso, vale reforçar, não significa necessariamente apenas o incremento da participação política direta, mas também, e principalmente, da pressão e da cobrança cidadã e da interlocução entre representantes e representados.

Com isso, a perspectiva de uma "democracia digital" se apresenta na forma de dispositivos, aplicativos e ferramentas digitais para "suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas e sociais do Estado e dos cidadãos em benefício do teor democrático da comunidade política". Da mesma forma, "o fortalecimento, via tecnologias digitais, de instituições do governo representativo, destinadas a evitar que o sistema político, em geral, e os governos, em particular, apoderem-se do Estado em prejuízo da soberania popular pode ser um objetivo mais realista e eficiente do que a busca e a espera por participação civil maciça".

No caso específico da democracia brasileira, onde os princípios do liberalismo clássico são constantemente desafiados pela centralização decisória, falta de transparência, abuso da autoridade, desigualdade perante a lei e de oportunidades, e onde predomina um contexto comunicacional de massa aburdamente concentrado, temas como pluralismo, prestação de contas e transparência (no qual já contribuem, por exemplo, o Contas Abertas, a Transparência Brasil e a Lei de Transparência Nacional) de fato parecem mais relevantes de serem desenvolvidos institucionalmente no ambiente online do que a participação direta propriamente dita.

Para saber mais:

MAIA, R.C.M; GOMES, W.; MARQUES, F.P.J.A. Internet e participação política no Brasil. Porto Alegre, Editora Meridional/Sulina, 2011.

CHADWICK, A.; HOWARD, P.N. The Routledge Handbook of Internet Politics. Nova York, Routledge, 2010.