segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Eleições, democracia e republicanismo no Brasil

Nos últimos dias, muitos manifestos em defesa da democracia ou de princípios democráticos foram apresentados por setores variados da sociedade brasileira que criticam, em especial, o comportamento do presidente Lula nessas eleições. Até mesmo em função de suas origens e dado o contexto de acirramento político fruto da proximidade do pleito de 3 de outubro, três manifestações em particular ganharam mais notoriedade. São elas os editoriais publicados ontem, domingo, 26/09, nos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, e o Manifesto em Defesa da Democracia, cujo lançamento em 23 de setembro último foi amplamente divulgado pela mídia. Das assinaturas do Manifesto constam nomes importantes como Celso Lafer, D. Paulo Evaristo Arns, Miguel Reali Jr., Ferreira Gullar, entre outros.

Se qualquer manifestação em defesa da democracia é importante e bem-vinda; se, no que diz respeito à democracia, melhor que tenhamos manifestações a favor do que contra; se nunca é demais defender os princípios básicos da liberdade política; mesmo assim, talvez muito influenciadas pelo contexto político e histórico sul-americano, tais manifestações passam apenas de forma transversal no que tem sido o principal problema dessas eleições: os ataques sistemáticos, por parte do presidente e do governo, à instituição republicana, e não à democracia em especial.

Folha e Estado, que, com a decadência notória do jornalismo impresso carioca, dividem hoje sozinhos a ponta na relevância da imprensa escrita nacional, apresentaram seus manifestos com base em uma preocupação pontual, mas nem por isso pouco importante: a liberdade de noticiar. Em meio a uma nova sucessão de escândalos que envolve o governo e toma as páginas dos jornais às vésperas do pleito, a Folha e o Estado reagiram a declarações do presidente que tenta deslegitimar as denúncias, protegendo, assim, sua candidata.

"O direito de inquirir, duvidar e divergir da autoridade pública é o cerne da democracia, que não se resume apenas à preponderância da vontade da maioria", escreveu a Folha. Em tom mais ríspido, e em texto que declara seu voto ao principal candidato da oposição, o Estado afirmou: "Efetivamente, não bastasse o embuste do 'nunca antes', agora o dono do PT passou a investir pesado na empulhação de que a imprensa denuncia a corrupção que degrada seu governo por motivos partidários".

As manifestações dos dois jornais são importantes e historicamente fazem parte de um contexto de reações que tomaram mais corpo a partir do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), apresentado no início do ano pelo governo Lula e que continha vários pontos polêmicos no que diz respeito ao controle, por parte do governo, do conteúdo jornalístico no Brasil. Este é um tema, digamos, em tensão hoje no país e nunca será demais reafirmar, nesse contexto, a liberdade de imprensa e o absurdo de qualquer controle sobre o conteúdo jornalístico.

O Manifesto em Defesa da Democracia, no entanto, vai mais além que os editoriais dos dois grandes jornais brasileiros. Diz o texto assinado já por quase 45 mil pessoas, este autor inclusive: "É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais. (...) É constrangedor que o Presidente não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há "depois do expediente" para um chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura".

Está aí o problema, que, ao meu ver, paira mais no terreno do republicanismo que da teoria democrática. Depois de resistir com mérito às pressões para que disputasse um absurdo terceiro mandato, o presidente Lula suja sua biografia de governo no fim do segundo mandato alimentando um dos piores males da cultura política brasileira: a confusão entre governo e Estado.

O presidencialismo brasileiro coloca na mão do mandatário a responsabilidade de ser tanto chefe de governo quanto de Estado. Ou seja, o presidente, em nenhum momento, deixa de ser o segundo. E, na República, o Estado não "serve" ao povo, não "atende" o povo, não "cuida" do povo. O Estado é posse do povo, propriedade de todos os cidadãos. O Estado não pode fazer campanha por um candidato ou outro porque o candidato não é de todos, nem pode ser. Na República, os cidadãos são donos do Estado. Quando um chefe de Estado defende um ou outro candidato de governo nada mais faz que se apoderar do Estado, um hábito comum entre políticos brasileiros e seus inúmeros indicados no aparelho estatal. É como se o sujeito que aluga sua casa decidisse, de uma hora para outra, vendê-la.

Nesse contexto, vale lembrar de Cícero, em De re publica (livro III, 43), ao se referir a Dionísio I, rei de Siracusa – a cidade-Estado grega localizada na Sicília – entre os anos 405 a.C. e 367 a.C. "Siracusa, aquela cidade admirável, com seus portos, suas ruas largas, seus portões, seus templos e seus muros, não pode ser uma República enquanto Dionísio for seu rei, porque nada pertence ao povo e o povo em si pertence a um homem só".