quinta-feira, 27 de março de 2014

Conhecimento e cidadania

Instituto de pesquisa britânico produz relatório sobre o impacto de iniciativas pró-transparência no acesso à informação e nas demandas por prestação de contas.

O instituto de pesquisa GSDRC, sigla para Governance, Social Development, Humanitarian and Conflict, publicou em janeiro deste mês um relatório encomendado pelo governo britânico sobre o impacto de iniciativas em favor de mais transparência política no acesso do cidadão à informação e nas demandas da sociedade por prestação de contas. Segundo o texto, mais informação sobre os agentes políticos é algo sempre bem-vindo, mas não suficiente para produzir um cidadão mais informado ou demandas sociais mais amplas de accountability.

Para o estudo, feito com base na literatura mais recente sobre o tema, fatores que influenciam a relação entre mais e melhor informação disponível e o acesso do cidadão são: 1) a qualidade da informação disponível – much open and transparent data in name is in practice not accessible to citizens; 2) a capacidade do cidadão de interpretá-las, dependente dos níveis contextuais de acesso à tecnologia, educação, digital literacy e capital social – ou o poder de influência das redes que são estabelecidas entre os cidadãos na sociedade; 3) discriminação e desigualdades sociais, ou seja, o poder da transparência de promover inclusão e empoderamento pode ser diminuído frente às persistentes desigualdades que atuam contra o acesso à informação por grupos de alguma forma marginalizados ou em desvantagem social; 4) novas tecnologias de informação e comunicação, que apresentam o potencial de reduzir a distância entre os dados e o cidadão, mas que podem também criar novos processos de desigualdade com os déficits humanos e tecnológicos envolvidos em seu uso; e 5) o papel dos "infomediadores", como a mídia, desenvolvedores, organizações civis e internacionais, que atuam (positiva e/ou negativamente, a depender do caso) na aproximação entre o cidadão e a informação governamental ou política.

No mesmo sentido, fatores que influenciam o fortalecimento das demandas por prestação de contas a partir de iniciativas voltadas para a transparência dos processos políticos incluem, segundo o estudo: 1) no lado da oferta, o grau de democratização, vontade política e incentivos estruturais no que diz respeito aos provedores de informação e os agentes políticos, bem como os processos de transição, as oportunidades para reforma que surgem de crises políticas e econômicas e a divulgação ampla de casos de corrupção generalizada no sistema político; 2) no lado da demanda, a questão se a informação compartilhada propicia ou não um entendimento maior sobre o comportamento do governo e como sugerir ou defender mudanças, o engajamento dos cidadãos no desenho e na implementação de políticas de transparência, os "gatilhos contextuais" que favorecem mudanças de comportamento, a capacidade da sociedade civil de desempenhar seu papel nesses processos e a influência externa na promoção de normas globais de transparência e sua capacidade de influenciar os contextos nacionais; e 3) na interligação entre governo e sociedade, a qualidade dessa relação e o investimento na criação de novos espaços para a colaboração construtiva na disseminação, no entendimento e uso da informação para o fortalecimento dos processos de prestação de contas e responsividade.

Ao fim, fica claro que, como bem afirma o estudo do GSDRC, iniciativas em favor de mais transparência são bem-vindas mas não suficientes para se exaltar uma transformação dos sistemas políticos ou uma democratização maior do Estado e de seus processos. Para tanto, é preciso avaliar caso a caso e, em especial, relacionar a qualidade e/ou a natureza da informação tornada disponível com o contexto político e social no qual ela está inserida. O relatório, assim, é um ponto contra os que pensam, talvez ingenuamente, que as tecnologias de comunicação isoladas são capazes de transformar as sociedades e os regimes políticos para melhor, sem notar que, muitas vezes, é o uso da técnica que cria barreiras ou reforça aquelas já existentes.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Os rumos da história

O que está por trás da polarização política na Venezuela.

O site FiveThirtyEight, editado pelo estatístico americano Nate Silver, famoso pelos prognósticos para o campeonato de baseball e as eleições presidenciais nos Estados Unidos, publicou agora em meados de março uma excelente análise de Dorothy Kronick sobre o que está por trás da excessiva polarização política na Venezuela. A autora é estudante de doutorado na Universidade Stanford.

A partir do diagnóstico de que são as classes média e alta que protestam hoje contra o presidente Nicolás Maduro, e não a classe mais baixa, a autora pergunta: se ambos os grupos sofrem com o atual racionamento de alimentos, altíssima inflação e um perigoso contexto de violência social, o que os divide em relação ao governo em Caracas? Para Kronick, a resposta está no fato de que detratores e defensores do atual governo venezuelano avaliam o chavismo de forma diferenciada. Enquanto aqueles pró-oposição comparam a situação atual da Venezuela com o desenvolvimento histórico recente de outras nações latino-americanas, partidários do regime bolivarista analisam o momento em relação ao passado pré-Hugo Chávez.

Nesse contexto, Kronick lembra que, após a bonança dos anos 1970, os choques do petróleo e as crises dos anos 1980 e 1990 geraram um "pesadelo econômico". Nesse sentido, em relação ao desastre anterior, a Venezuela demonstrou recuperação após a chegada do socialismo bolivariano. A renda subiu e a pobreza caiu, como mostram os gráficos 1 e 2 abaixo, com base em informações do Banco Mundial e do Banco Central venezuelano.

Gráfico 1


Gráfico 2

Não à toa aqueles que apóiam o governo temem o retorno dos tempos pré-Chávez. Quinze anos depois da revolução bolivariana, o slogan político governista "No volverán" se mantém forte para boa parte da população venezuelana. No entanto, mesmo o sucesso pode ser relativizado e aí surgem as bases para a discordância. Afinal, o preço do petróleo, que girava em torno de US$ 10 nos anos 1980 e 1990, explodiu na virada do século, como mostra o Gráfico 3 abaixo. Frente ao aumento impressionante do preço do principal produto venezuelano pergunta-se: foi o regime bolivariano tão bem sucedido assim?

Gráfico 3

Na comparação com o desenvolvimento de outros países da América Latina, a Venezuela não vem se saindo bem. Os gráficos 4, 5 e 6 mostram isso, no que diz respeito à média do crescimento do PIB per capita entre 1999 e 2012 (Gráfico 4), à inflação média anual no mesmo período (Gráfico 5) e à média anual de redução da mortalidade infantil no intervalo (Gráfico 6). As colunas em vermelho representam a posição venezuelana em meio a outras nações do continente.

Gráfico 4

Gráfico 5

Gráfico 6

Nesse contexto, para Dorothy Kronick, o que poderia ajudar os venezuelanos hoje seria algum tipo de aprendizado recíproco. Em especial, segundo a autora, sobre o que dizem os dados comparativos com o desenvolvimento histórico recente de outros países da região. Por um viés mais político, no entanto, pode-se dizer que os números são apenas uma parte de um impasse no qual estão presentes questionamentos legítimos sobre a capacidade da democracia liberal venezuelana de construir um ambiente com padrões mínimos de justiça social e a possibilidade do regime bolivarista de se constituir em um poder não só eficiente em termos de governância como realmente democrático e regido por padrões mínimos de igualdade cidadã em sua ação.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Democracia e representação

Publicação brasileira dialoga com novas perspectivas sobre a prática representativa em regimes democráticos.

O professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB) Luis Felipe Miguel acaba de lançar, pela editora Unesp, o livro Democracia e representação: Territórios em disputa. A obra vem se juntar a uma série de novos trabalhos sobre o tema que, para alguns autores, acaba por constituir, junto com os movimentos populares mais recentes, uma retomada da discussão sobre a representação política nos regimes democráticos.

Afinal, uma ampla literatura ressalta hoje uma gama de fenômenos históricos e sociais recentes que teriam modificado as condições nas quais a representação política se desenvolveria nas democracias contemporâneas. Alguns autores, por exemplo, apontam para uma crise no "pensamento standard" da representação, que se limitaria a conceber a prática às formas eleitorais e a partir de uma base territorial específica - o Estado-nação. É ressaltado, por exemplo, nesse contexto, o surgimento de arenas decisórias transnacionais, onde proliferam atores e temas de natureza não-territorial que escapariam do alcance da "representação standard", com base no voto e circunscrita ao Estado. 

Além disso, a literatura chama a atenção para o fato de que temas e arenas decisórias coletivas, nos níveis nacional e supranacional, estão hoje sob controle de especialistas, que percorrem caminhos distantes das tradicionais instituições da representação em regimes democráticos. Soma-se a tudo isso a relativização do caráter igualitário da democracia representativa moderna por demandas de reconhecimento, equalização ou compensação de grupos estabelecidos em torno de características, identidades ou condições sociais e/ou culturais. Tais demandas estariam produzindo um discurso de representação com base em lógicas diferentes daquelas ligadas ao igualitarismo e universalismo do “modelo standard” eleitoral e territorial.

São apontadas, assim, novas estruturas e oportunidades para a representação e a influência política, que não apenas refletiriam em parte um papel diminuído das estruturas formais nos processos decisórios, mas se constituiriam de uma crescente diversificação das formas público-discursivas e de associação nas sociedades contemporâneas.

Em meio a toda essa discussão, não à toa surgem também questões sobre a legitimidade e o caráter democrático das representações de tipo não-eleitoral e não-territorial, ou mesmo das chamadas “invocações ou reivindicações de representação”, que estão presentes na teoria mais recente sobre o tema. Nesse contexto, a literatura alerta para a diluição das certezas sobre “quem 'fala', por quem e com que autoridade”. Uma pesquisa feita em São Paulo e na Cidade do México afirma, por exemplo, que o ceticismo frente ao crescente protagonismo das organizações civis como agentes de intermediação política se mostra pertinente.

Inserido nesse debate, o livro de Luis Felipe Miguel ressalta a necessidade de se reforçar os mecanismos de controle e acompanhamento por parte do cidadão da prática representativa e desconfia das novas formas de pensar a representação política nas democracias contemporâneas, apresentadas pela literatura mais recente. Segundo o autor, como está na quarta capa de sua obra, "representação e democracia são 'territórios em disputa' porque tanto podem se concretizar em arranjos que favorecem a perpetuação das assimetrias e das relações de dominação quanto podem ampliar o custo de sua reprodução e, assim, contribuir para combatê-las". Nesse contexto, continua, a "teoria política não é um lugar neutro; ao contrário, é partícipe desta disputa, sem que isso signifique engajamento cego, redução da complexidade do real ou abandono do rigor na produção do argumento".

Ao fim, a meu ver, mais importante que as questões intrínsecas ao debate é perceber o quanto a discussão sobre a representação democrática, ora pensada a partir de uma “crise de representação” ou “crise da democracia representativa”, ora concebida através da necessidade de se reconfigurar os processos representativos a novas condições, tornou-se mais denso nos últimos anos, com a presença de uma multiplicidade de perspectivas e teorias normativas, pós-modernas, dos campos da comunicação política, da sociedade civil, das relações internacionais e da própria teoria democrática. Uma literatura que carrega o potencial de gerar reflexões sobre os processos que constituem a representação nas democracias contemporâneas, reafirmando dessa forma a própria posição da representação na teoria da democracia.

Para saber mais:
- CASTIGLIONE, D.; WARREN, M.E. Rethinking Democratic Representation: Eight Theoretical Issues. Texto apresentado no seminário Rethinking Democratic Representation, Centre for the Studies of Democratic Institutions, University of British Columbia, 18-19 de maio de 2006.
- LAVALLE, A.G.; HOUTZAGER, P.; CASTELLO, G. Democracia, pluralização da representação e sociedade civil. Lua Nova, n. 67, 2006, p. 49-103.
- MANSBRIDGE, J. Representation Revisited. Democracy & Society, vol. 2, n. 1, 2004, p. 1, 14-19.
- MANSBRIDGE, J. Rethinking Representation. American Political Science Review, vol. 97, n. 4, Novembro, 2003, p. 515-528.
- NÄSTRÖM, S. Where is the representative turn going? European Journal of Political Theory, vol. 10, n. 4, 2011, p. 501-510.
- REHFELD, A. Representation Rethought: On Trustees, Delegates, and Gyroscopes in the Study of Political Representation and Democracy. American Political Science Review, vol. 103, n. 2, Maio, 2009, p. 214-230.
- SAWARD, M. The Representative Claim. Nova York: Oxford University Press, 2010.
- SHAPIRO, I.; STOKES, S.C.; WOOD, E.J.; KIRSHNER, A.S. (eds.). Political Representation. Nova York: Cambridge University Press, 2009.
- VIEIRA, M.B.; RUNCIMAN, D. Representation. Londres: Polity Press, 2008.
- URBINATI, N. O que torna a representação democrática? Lua Nova, n. 67, 2006, pp. 191-228.
- URBINATI, N. Representative Democracy: Principles and Genealogy. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2008.

sexta-feira, 7 de março de 2014

A crise na Venezuela

Imbróglio pressiona instituições e ameaça estabilidade política na região.

Em meio ao acirramento da situação na Venezuela, o instituto Wilson Center, em Washington, convidou quatro especialistas para debater qual deve ser o papel de institutições internacionais e nações como o Brasil ou os Estados Unidos na crise venezuelana. Foram chamados para a discussão "The Crisis in Venezuela: What Role for the International Community": o diretor do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Di Tella, em Buenos Aires, Juan Tokatlian; o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza; o ex-diplomata americano Philip French; e o analista brasileiro Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute, no Wilson Center. Os quatro, em geral, buscam diagnósticos e soluções para a sobrevivência das institutições venezuelanas em meio à polarização que, radicalizada, pode gerar efeitos políticos a todo o continente.

Para Tokatlian, a principal preocupação da comunidade internacional hoje com relação à Venezuela deve ser a prevenção de qualquer forma de autoritarismo de esquerda ou direita no país. Segundo ele, a radicalização do contexto venezuelano pode produzir caos social ou mesmo uma guerra civil, transformando-se em um foco de instabilidade com grande potencial de polarizar as políticas internas dos países da região – no caso brasileiro, um elemento a mais no já conturbado momento de Copa do Mundo, eleições e manifestações pelo país.

Ainda segundo Tokatlian, não há no continente uma instituição internacional com legitimidade para mediar os conflitos políticos na Venezuela, seja a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), da qual Estados Unidos e Canadá não fazem parte, a Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual Cuba não faz parte, ou a União das Nações Sul Americanas (Unasul), que é vista pela oposição venezuelana como pró-chavista.

Dessa forma, para o professor, uma saída seria a promoção de negociações por um grupo formado por Estados Unidos, México, Colômbia, Brasil, Argentina, Bolívia e Cuba. No entanto, o próprio analista desacredita a viabilidade da reunião de um espectro tão divergente de nações.

O secretário-geral da OEA, o chileno José Miguel Insulza, faz um pronunciamento político. Prega a necessidade do diálogo e condena a violência como estratégia. Em seu texto, o ponto principal talvez seja afirmar que a Venezuela tem "um governo eleito democraticamente, com um significativo e visível apoio popular". Apesar da divisão, argumenta Insulza, "tais são fatos indisputáveis". Além disso, o secretário-geral demonstra não acreditar que a crise possa ser resolvida com intervenção externa: "The crisis will not be resolved from the outside", afirma.

O ex-diplomata americano Philip French também lembrou que "muitos venezuelanos apoiam o presidente Nicolás Maduro". Afinal, escreve o analista, foram a corrupção e uma maioria pobre e ignorada pela elite tradicional venezuelana durante décadas que levaram Chávez ao poder 15 anos atrás. Segundo French, os governos Chávez e Maduro desperdiçam há anos, de forma flagrante e até "criminosa", um capital político sem precedentes na Venezuela e os enormes recursos advindos da exploração de petróleo no país. Entretanto, apesar da inflação recorde, da insegurança e da escassez de produtos, algo em torno de metade dos venezuelanos apoiam o governo atual, a julgar pelas pesquisas e os resultados das eleições municipais e estaduais de dezembro de 2013.

Nesse contexto, segundo French, os Estados Unidos devem continuar a condenar a violência e os abusos aos direitos humanos na Venezuela e pressionar aqueles que têm feito vista grossa ao que acontece em Caracas, "como o Brasil e a OEA", afirma. No entanto, o ex-diplomata americano argumenta que qualquer retórica ou ação de Washington na crise venezuelana deve reconhecer o ressentimento legítimo das massas por trás de Hugo Chávez e Nicolás Maduro em relação às elites no país. Para French, qualquer que seja o próximo governo venezuelano, este terá que respeitar igualmente as aspirações chavistas e da oposição.

Por fim, o analista brasileiro Paulo Sotero lembrou das atuações passadas de Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva em crises na região, que poderiam servir de inspiração a Dilma Rousseff em como tratar do imbróglio vizinho. Em 2002, no último ano do segundo mandato, FHC denunciou a tentativa de golpe contra o então presidente Hugo Chávez como uma violação da cláusula democrática inter-americana, assinada em Lima em 11 de setembro de 2001.

No início de 2003, Lula liderou a criação do "Grupo de Amigos" da Venezuela e, em 2008, o então presidente agiu decisivamente para apaziguar uma crise interna na Bolívia, minando a estratégia de confrontação levada à frente por Hugo Chávez. Para Paulo Sotero, a atual crise venezuelana requer do Brasil a articulação de uma resposta coletiva no âmbito da Unasul.

Ao fundo das quatro posições está o alerta de que é preciso manter de pé as instituições políticas venezuelanas. Uma opção nesse sentido que vem sendo levantada, como bem lembra Sotero, é a proposta pelo governador do estado de Miranda Henrique Capriles. Derrotado por pouco nas presidenciais do ano passado, Capriles aposta no recall eleitoral de meio de mandato, previsto pela Constituição venezuelana.