quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Vida desperdiçada

Em meio ao contexto das manifestações, morte de adolescente por policial em São Paulo fica em segundo plano em relação à violência dos protestos.

Dois eventos violentos interligados ocorridos em São Paulo, o primeiro no domingo (27/10) à noite e o segundo no dia seguinte, praticamente dominaram a cobertura da grande imprensa brasileira na última semana de outubro. O primeiro deles foi a morte do adolescente Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, vítima de um disparo no tórax após uma abordagem da Polícia Militar de São Paulo, na região de Vila Medeiros, Zona Norte da capital. O segundo foi o violento protesto, decorrente do fato, no qual manifestantes fecharam as pistas da Rodovia Fernão Dias, atearam fogo em duas carretas, cinco ônibus e um carro, pelo menos um deles chegou a dirigir um caminhão-tanque na contramão. Em meio ao contexto das seguidas manifestações no país, infelizmente o primeiro ganhou menor atenção que o segundo, pelo menos no discurso midiático.

O Jornal Nacional, por exemplo, abriu sua reportagem sobre o caso na segunda-feira à noite com o texto: "São Paulo voltou a sofrer ataques violentos de vândalos - que incendiaram caminhões e ônibus e bloquearam a rodovia federal que liga a capital paulista a Belo Horizonte". A matéria de 5m23 tratou da morte de Douglas por apenas 1m45, sendo o restante tomado pela violência dos protestos. Na reportagem, apenas o porta voz da PM de São Paulo foi ouvido como representante do estado sobre o caso. Durante a edição do dia, foram feitas várias aparições ao vivo da região em São Paulo, produzidas de um helicóptero, nas quais o termo "vândalos" foi repetido com exaustão.

A Folha, na terça-feira, seguiu mais ou menos o mesmo caminho. Colocou na capa uma foto de um ônibus incendiado e o título: "Protesto contra morte de jovem tem incêndios e saques em SP". Logo em seguida, vinha uma chamada para um artigo publicado pelo jornal: "Ataque a policial deve ser considerado agressão ao Estado", referindo-se ao bárbaro espancamento sofrido pelo coronel Reynaldo Rossi na noite de sexta-feira, 25/10. Abaixo do título do artigo, ainda na capa, a Folha colocou mais uma chamada, sobre Black Blocs presos pela polícia paulista.

No mesmo contexto, a manchete do Globo no dia seguinte à morte de Douglas foi: "Vândalos interditam rodovia e queimam veículos em SP; cerca de 90 pessoas são detidas".

É claro que a violência da manifestação, que pode ter tido participação, segundo se apura, do crime organizado, merece toda a atenção da mídia e da sociedade. No entanto, também parece notório que, em meio à tensão e ao acirramento em torno das seguidas manifestações no país, a gravidade da morte de Douglas ficou, infelizmente, em segundo plano.

Afinal, trata-se da morte de um jovem cidadão por um policial pago pela sociedade para servi-la e protegê-la, fato que se configura como uma total inversão do sentido original-existencial do Estado, calcado na teoria hobbesiana canônica de que abrimos mão da nossa liberdade radical em nome de uma proteção garantida pela autoridade legal. Quando o próprio Estado não somente não garante a segurança mas passa a ser, ele mesmo, fonte de insegurança, os princípios legitimadores da autoridade e do ordenamento social se esfacelam.

Além disso, a morte de Douglas Martins Rodrigues está longe de ser um caso isolado, dado que a polícia brasileira está entre as que mais mata no mundo. Como informa a BBC, os homicídios cometidos por policiais no Brasil, em geral classificados como "resistência seguida de morte" ou "autos de resistência", já foram tema de estudo da ONU, que analisou 11 mil casos entre 2003 e 2009 sob tais rubricas somente no Rio e em São Paulo. Sobre o estudo, o enviado da ONU Philip Alston afirmou, em 2010, ter provas de que boa parte dessas mortes foram na realidade execuções ilegais.

Ainda sobre o mesmo assunto, infelizmente, pouco se comentou que está para ser votado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4471/2012, que estabelece procedimentos para a investigação das mortes e lesões cometidas por agentes do Estado, como policiais, durante o serviço. Hoje, as mortes registradas como “autos de resistência'' ou “resistência seguida de morte'' são raramente investigadas.

A gravidade da morte de Douglas Martins Rodrigues, de apenas 17 anos, por um agente do Estado, poderia ter servido para que a sociedade brasileira pudesse refletir com mais cuidado sobre suas prioridades e o comportamento, a remuneração, a cultura e o treinamento do aparato policial brasileiro. Infelizmente, este não parece ter sido o caso.

Em tempo: O Globo iniciou no domingo 3/11, uma semana após a morte de Douglas, uma série de reportagens sobre a violência policial no país.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Tragédia via controle remoto

Documentos divulgados pelo Washington Post mostram que governo paquistanês apóia ataques de aviões não-tripulados americanos em seu território.

O Washington Post divulgou, no último dia 23 de outubro, documentos que comprovam a ciência e a aprovação do governo do Paquistão aos ataques de aviões não-tripulados americanos (drones) em seu território. A notícia vai de encontro às inúmeras declarações oficiais de Islamabad pedindo o fim das ofensivas, que se tornaram uma ação-chave do governo Obama em sua estratégia contra o terrorismo. Junto ao encontro do presidente americano com o primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, ocorrido também no último dia 23, em Washington, a divulgação dos documentos chama a atenção para o trágico e polêmico uso de drones como forma de combate a organizações terroristas na regiâo.

Um relatório da Anistia Internacional, por exemplo, divulgado na véspera do encontro entre Obama e Sharif, condena veementemente o uso de aviões não-tripulados contra possíveis terroristas no Waziristão do Norte, região tribal do noroeste paqustanês que faz fronteira com o Afeganistão. A Anistia conta, por exemplo, a história de Mamana Bibi, de 68 anos, morta em um bombardeio quando colhia vegetais no jardim da sua casa, em outubro de 2012.

Um estudo da ONU vai no mesmo caminho e afirma que os drones americanos já mataram pelo menos 400 civis no local. Outro do Bureau of Investigative Journalism, organização não-governamental britânica, calcula que entre 407 e 926 civis morreram em ataques desse tipo.

Com base nesses e outros números, o estúdio californiano Pitch Interactive produziu um website, ilustrativo da tragédia. Segundo as informações no site, mais de 3 mil pessoas, incluindo 175 crianças, morreram em 372 ataques por controle remoto entre 2004 e 2013 no Paquistão. Nesse contexto, não espanta que, segundo reportagem da Bloomberg, os gastos com aviões não-tripulados podem chegar a quase 90 bilhões de dólares nos próximos 10 anos, com despesa anual atingindo valores superiores aos 10 bilhões de dólares, duas vezes o que é investido hoje por ano no desenvolvimento dessa tecnologia nos Estados Unidos.

Na mesma semana da divulgação pelo Post dos documentos, da visita do premier paquistanês a Washington e do lançamento do relatório da Anistia Internacional, o Huffington Post publicou ainda uma entrevista com um ex-funcionário do Departamento de Estado americano no Iêmen, outro país-alvo dos drones americanos. Segundo a fonte, cada ataque desse tipo no país cria de 40 a 60 novos inimigos dos Estados Unidos na região.

sábado, 19 de outubro de 2013

Democracia digital e cultura política

Simpósio internacional debate internet e participação política cidadã.

A participação política do cidadão é um dos temas mais discutidos entre pesquisadores da chamada democracia digital, e-democracia ou ciberdemocracia, que, resumidamente, trata da análise, do uso e desenho de iniciativas digitais em prol do incremento da política em regimes democráticos. A discussão, por exemplo, esteve muito presente no II Simpósio Internacional Brasil-Alemanha sobre Política e Internet: "Democracia na Era Digital", realizado no Instituto Goethe em Salvador, nos últimos dias 17 e 18 de outubro, promovido pela instituição alemã e o Centro de Estudos Avançados em Democracia Digital (CEADD) da Universidade Federal da Bahia (FACOM/UFBA).

O tema ganha ainda mais importância quando pensado a partir de um contexto específico, marcado por fenômenos como a queda no comparecimento às urnas – inclusive onde o voto é obrigatório –, o sentimento de baixa efetividade da cidadania na decisão política, o descolamento entre o sistema político e o cidadão, o desinteresse na política, uma visão muito negativa da política e dos políticos, o baixo capital político da esfera civil, a ausência de soberania popular, a falta de espaços deliberativos, a baixa representatividade no debate público etc.

Não à toa, já são muitas as iniciativas digitais dispostas na rede, com o intuito de "empoderar" o cidadão na política de sua cidade, seu estado, seu país, inclusive de seu planeta, como nos temas do meio ambiente, da energia nuclear ou dos direitos humanos. Tais iniciativas são originadas tanto de governos, como é o caso do Gabinete Digital, no Rio Grande do Sul – experiência referência hoje para projetos semelhantes no mundo todo –, como da própria sociedade civil, como o Votenaweb, que procura aproximar o cidadão brasileiro do que se passa no Congresso Nacional, ou o Avaaz, que serve como plataforma mobilizadora em favor de determinados projetos de lei.

Ao mesmo tempo, no entanto, algumas dúvidas pairam sobre o potencial da comunicação política via internet. Alguns autores, por exemplo, afirmam que a internet não torna ninguém mais politizado, apenas serve de instrumento para aqueles que já são engajados. No mesmo sentido, algumas pesquisas sugerem que as redes sociais favorecem uma reunião daqueles que concordam entre si e que isso pode acabar enclausurando o cidadão em ambientes de baixa contestação. Da mesma forma, alguns críticos temem que a cidadania digital acabe por esvaziar de vez a participação fora da rede e que o cidadão fique restrito ao ativismo do tipo "clique no mouse".

Além disso, há o avanço das empresas e da lógica comercial sobre o terreno, que tem sido levantado como um risco nada desprezível, haja vista o que ocorreu na mídia de massa tradicional. Como se não bastasse, a infraestrutura de cabos, fundamental à comunicação digital, também é dominada por empresas e concentrada nos países mais ricos, em especial entre os Estados Unidos e a Europa, o que por si só já gera um acesso diferenciado à experiência na rede.

Entretanto, apesar dos desafios, a internet traz sem dúvida um potencial de transformação da comunicação política nas democracias contemporâneas em favor de uma cultura mais participativa, em especial com relação aos mais jovens. Afinal, aquele cidadão passivo que cumpre somente o papel de "receptor" das mensagens veiculadas no formato "grade de programação" tende a ficar para trás, no tempo e na história.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A encruzilhada Obama

O que está por trás do impasse político que paralisou o governo americano.

Segundo Michele Swers, professora da Universidade Georgetown, em Washington, em análise publicada pelo blog USAPP-American Politics and Policy, da London School of Economics and Political Science (LSE/UK), a chave para se entender o impasse atual no Congresso Americano, relativo ao orçamento do governo Obama, é o fato de que uma boa parte dos representantes em cena vem de condados onde seus partidos têm posição relativamente confortável. Ou seja, esses representantes são hoje mais temerosos das primárias contra um adversário interno ideologicamente mais radical do que das eleições de 2014 – o mandato de representante nos Estados Unidos obedece o sistema distrital e é de apenas dois anos.

Nesse contexto, com receio de prover munição aos competidores internos, representantes eleitos se tornam mais fechados em suas posições, deixando pouco espaço de manobra para negociações na Câmara. O resultado é uma construção de consenso dificultada entre os dois partidos.

De fato, após a tomada da Câmara pelos republicanos em 2010, quando os democratas amargaram uma perda recorde de 63 cadeiras, a variação em 2012 foi muito pequena, de mais oito cadeiras para os democratas e menos sete assentos para os republicanos (um ficou indeciso). Desde 2010, o governo Obama e a maioria republicana na Câmara têm travado duras batalhas sobre questões fiscais e as funções do Estado.

Antes disso, por exemplo, com o controle da Câmara pelos democratas, o governo Obama pôde aprovar legislações como o Affordable Care Act, também conhecido como Obamacare. O ato foi transformado em lei em 23 de março de 2010 e estabelece um amplo leque de opções ao governo federal, incluindo subsídios e incentivos, no intuito de tornar a cobertura dos planos de saúde mais amplas e, principalmente, mais acessíveis à população americana.

Desde 2010, no entanto, as coisas ficaram mais difíceis para a Casa Branca, até porque boa parte dos analistas creditam a esmagadora vitória republicana na Câmara, naquele ano, a uma reação conservadora ao Obamacare em meio à onda Tea Party. Daquele momento em diante, além dos impasses sobre o orçamento, iniciativas mais amplas do governo Obama, como a reforma da imigração, foram bloqueadas.

Ao mesmo tempo, um estudo de Keith Poole, da Universidade da Califórnia em San Diego, e Howard Rosenthal, da Universidade de Nova York, sobre o comportamento dos representantes em votações sugere que, nos últimos 30 anos, democratas vêm se tornando progressivamente mais liberais, e republicanos, mais conservadores. No caso do GOP, a radicalização cresce especialmente depois do governo Reagan e da chamada "revolução de 1994", que colocou o Partido Republicano no controle do Congresso Americano (Câmara e Senado) pela primeira vez em 40 anos. Na época, Bill Clinton vinha com uma agenda que incluía medidas liberais também para a saúde e a integração de homossexuais nas Forças Armadas.

Sobre o impasse atual, Michele Swers lembra ainda que a polarização se alimenta da distância ideológica que há entre o Senado, controlado pelos democratas, e a Câmara dos Representantes, controlada pelos republicanos, e da própria pauta política conduzida pela Casa Branca, que coloca pressão sobre os dois partidos.

Para o GOP, coisas como o Obamacare são agora uma questão de vida ou morte. O avanço liberal sobre as instituições, como no caso da saúde, por exemplo, unifica o partido a partir de um elemento ideológico comum, a intervenção do Estado na vida privada do cidadão ou a socialização através do Estado dos ganhos particulares do indivíduo.

Do outro lado, os prognósticos não são bons para os democratas. Afinal, as eleições de meio de segundo mandato costumam ser as piores para o presidente que fica oito anos na Casa Branca.