quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A experiência do fim

Os 50 anos do assassinato de JFK e sua relação com a história.

Se há um Winston Churchill na história política norte-americana, este é John F. Kennedy. Não que ele tenha sido o melhor orador entre os presidentes dos Estados Unidos. Um embate com Abraham Lincoln seria, muito provavelmente, desvantajoso a JFK. De qualquer forma, algumas semelhanças aproximam Kennedy de Churchill, certamente dois dos políticos mais importantes do século XX.

Como Churchill, Kennedy quebrou tradições. Se o ex-primeiro-ministro atacou as regalias da aristocracia britânica, JFK foi, na história, o segundo candidato católico a presidente dos Estados Unidos e o primeiro a ser eleito, numa nação de ampla maioria protestante. Kennedy também enfrentou o velho racismo do Sul – depois de muita pressão, é verdade – e foi o presidente eleito mais jovem da história norte-americana, aos 43 anos, quase 27 anos mais moço que o seu antecessor, Dwight Eisenhower, quando este deixou o cargo. É verdade que Theodore Roosevelt chegou à Casa Branca mais novo que Kennedy, aos 42 anos, mas Ted, como era conhecido, não foi eleito presidente, mas vice-presidente e tomou posse depois do assassinato de William McKinley, em 14 de setembro de 1901.

Como Churchill, Kennedy tinha pretensões literárias e era adepto da historiografia amadora. O norte-americano não alçou vôos tão altos quanto o britânico, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1953, mas JFK foi agraciado com a principal comenda literária dos Estados Unidos, o prêmio Pulitzer, em 1957, com o livro Profiles in Courage. Não à toa, ele escreveu um compêndio sobre a coragem de certos políticos norte-americanos do passado, que enfrentaram o senso comum e mudaram seu tempo com propostas inovadoras. 

Como Churchill, Kennedy foi a encarnação política do espírito de liderança. Os discursos de JFK, por exemplo, publicados pela Zahar, com contextualização histórica do professor Robert Dallek e de Terry Golway, são fonte preciosa de uma época em que o mundo esteve à beira do precipício. (Dallek talvez seja o principal historiador vivo da Presidência americana, autor também do sensacional Nixon e Kissinger: Parceiros no poder, que conta a novela da relação desses dois personagens, brincando de deuses na Terra durante a Guerra Fria.)

Afinal, durante o curto mandato de Kennedy, Estados Unidos e União Soviética estiveram envolvidos direta ou indiretamente na invasão frustrada de exilados cubanos treinados pela CIA à Baía dos Porcos, na Crise de Berlim e na perigosíssima Crise dos Mísseis. Nesse conturbado contexto, é difícil saber quem veio primeiro: se os fatos ou o presidente. Foi a postura agressiva de Kennedy na campanha à Presidência e nos primeiros anos de governo que gerou respostas soviéticas à altura? Ou JFK foi pego pelo destino, tendo que carregar o fardo de uma contenda atrás da outra durante os poucos anos em que esteve na Casa Branca?
 
Na verdade, Kennedy acendeu o pavio da Guerra Fria. Desde os primeiros momentos de sua campanha, atacou o então presidente Eisenhower supostamente por permitir que os soviéticos tivessem passado à frente dos Estados Unidos tanto na corrida armamentista quanto na espacial, sendo que apenas na segunda isso era verdade.

Apesar de não ter sido o mentor do plano de retirada de Fidel Castro do poder e de não ter envolvido as Forças Armadas norte-americanas na invasão da Baía dos Porcos, JFK estava ciente do fato e deu luz verde à operação comandada pela CIA. Para muitos historiadores, a Crise dos Mísseis e o quase desastre ocorrido na viagem-teste apressada do primeiro submarino nuclear soviético, o K-19 (conhecido como o “fazedor de viúvas”, ou “Hiroshima”, pela Marinha russa, e cuja história foi transformada em filme com Harrison Ford), foram respostas da linha-dura no Kremlin à agressividade de Kennedy, talvez necessária a JFK internamente, para contrapor as questões levantadas por seu catolicismo e sua juventude.

Na verdade, Eisenhower, ou Ike, como era conhecido, deixou a Kennedy uma vantagem significativa na corrida armamentista da Guerra Fria. Mesmo assim, JFK, ao tomar posse, iniciou a produção de 1000 mísseis balísticos intercontinentais, além de 32 submarinos Polaris, com mais 656 mísseis. Moscou, no mesmo momento, não tinha um submarino capaz de lançar mísseis balísticos até o K-19, que podia carregar apenas três. Na mesma época, enquanto os soviéticos tinham 50 bombardeiros que poderiam atacar os Estados Unidos lançando ogivas nucleares sobre o país, os norte-americanos tinham mais de 500, prontos para serem utilizados.

O modelo da Guerra Fria, como se sabe, não comportava tamanho desequilíbrio estratégico. Uma tentativa dos soviéticos de demonstrar poder foi tornar o K-19 operacional rapidamente, o que quase causou um acidente nuclear de proporções catastróficas. Outra foi o envio de mísseis a Cuba, no episódio que acabou conhecido nos EUA como a Crise dos Mísseis (na União Soviética como a Crise do Caribe e, em Cuba, como a Crise de Outubro).

Além disso, a política agressiva de Kennedy diminuiu a margem de negociação de Krushchev a respeito de Berlim, um impasse que vinha sem solução desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Pressionado internamente, Krushchev endureceu a posição no encontro de cúpula com Kennedy em Viena, em junho de 1961, quando o K-19 saía para a sua primeira viagem-teste. Sem acordo, a capital alemã foi dividida por um muro.

No entanto, como um personagem shakespeariano capaz de pensar sobre si mesmo e mudar seu comportamento, o Kennedy que atravessou uma sucessão de crises que poderiam ter levado a humanidade ao fim é bastante diferente daquele jovem político que buscava se impor na campanha presidencial e no início do mandato. Em 1963, quando foi assassinado em 22 de novembro, Kennedy buscava ser o porta-voz da esperança e da paz, do entendimento e da compreensão, da auto-reflexão e da justiça. 

Seus dois principais discursos desse momento – “Uma visão de paz” e “A crise moral da nação” – apresentam argumentos concretos para uma vida mais justa dentro e fora dos Estados Unidos, sem que isso significasse uma deferência ao sistema comunista. No primeiro pronunciamento, por exemplo, feito em Washington em 10 de junho de 1963, JFK afirmou:

"Alguns dizem que é inútil falar sobre a paz mundial, ou sobre a lei mundial, ou sobre o desarmamento mundial, e será inútil até que os líderes da União Soviética adotem uma atitude mais esclarecida. Eu espero que um dia isso aconteça e acredito que possamos ajudá-los. Mas também acredito que devemos reexaminar nossa própria atitude - como indivíduos e como nação -, pois ela é tão essencial quanto a deles. Todo cidadão que reflita sobre os desesperos da guerra e queira a paz deve começar a olhar para dentro - examinar sua própria atitude em relação às possibilidades da paz, em relação à União Soviética, ao curso da Guerra Fria, à liberdade e à paz aqui neste país".

P.S.: Este texto é uma versão da apresentação que fiz à edição brasileira de "Uma visão de paz: Os melhores discursos de John F. Kennedy", organizado por Robert Dallek e Terry Golway e publicado pela editora Zahar.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Diplomacia presidencial

Observatório Político Sul-Americano analisa a politização da política externa brasileira nos governos FHC, Lula e Dilma.

De autoria da professora Maria Regina Soares de Lima (UERJ), um dos principais nomes do país no campo da política externa brasileira e das relações internacionais, e de Rubens Duarte, que cursa atualmente seu doutorado na Universidade de Birmingham, o Observatório Político Sul-Americano (OPSA) publicou agora em novembro uma interessante análise comparativa da diplomacia dos governos FHC e Lula/Dilma. Mais que apontar diferenças, o texto reforça a ideia de que em regimes democráticos, para o bem ou para o mal, a política externa é sempre politizada, "refletindo as orientações político-ideológicas do governo de turno".

Os autores partem da crítica que é feita à diplomacia dos governos Lula e Dilma, que estaria marcada, segundo a oposição e a "mídia conservadora", por um "viés ideológico". Tal característica, ainda segundo os críticos, se mostraria claramente na "branda reação" à nacionalização da refinaria da Petrobrás na Bolívia por Evo Morales; na entrada da Venezuela no Mercosul; no afastamento do Paraguai; na contratação de médicos cubanos; e no episódio de "'fuga' cinematográfica do senador Roger Molina, asilado na embaixada brasileira".

Além disso, Lima e Duarte ressaltam que muitas vezes um "argumento binário" pauta a crítica à aproximação que a diplomacia Lula, em especial, desenvolveu em relação aos países da América do Sul, África e Ásia. Para os autores, a crítica tem por base a falácia de que, ao enfatizar as relações com o Sul ou com países progressistas na América do Sul, "a política externa petista estaria se afastando dos países do Norte, de tradição democrático-liberal".

Como afirma o texto, esta interpretação da partidarização da política externa revela "um sentimento tecnocrático", calcado na ideia de que haveria um "interesse nacional" objetivo que pudesse ser perseguido sem a influência das orientações político-ideológicas do governo em posse do Executivo, algo sem sentido do ponto de vista epistemológico. Na democracia, escrevem os autores com precisão, "mesmo que os compromissos internacionais assumidos por qualquer governo democrático não devam ser revertidos a cada mudança de governo, sob pena do país perder sua credibilidade face aos parceiros externos, existe sempre alguma latitude para que governos eleitos possam incluir temas de política externa em suas plataformas eleitorais".

Da mesma forma que as orientações estratégicas do governo Lula - que eleva a participação do país nas relações econômicas internacionais e na discussão dos grandes problemas mundiais, "ressaltando os efeitos da 'globalização assimétrica' e a desigualdade entre as nações" -, a política externa do governo FHC também esteve alinhada aos objetivos políticos do partido deste presidente ao priorizar os processos de estabilização econômica e reforma do Estado, a inserção competitiva e a modernização produtiva. Nesse contexto, a diplomacia, como lembram os autores, teve o papel de restaurar a credibilidade econômica e política do país, uma agenda presente no debate político brasileiro pelo menos desde as eleições de 1989 e que se traduziu na adesão do Brasil aos regimes internacionais vigentes de comércio, direitos humanos, meio ambiente, controle nuclear e de tecnologia de mísseis.

Além da democracia, os autores ainda ressaltam a importância da presidencialização da política externa brasileira, que também acaba favorecendo a politização da diplomacia em detrimento da autonomia do Itamaraty. É o que Jeffrey Cason e Timothy Power caracterizam, segundo Lima e Duarte, como o "papel direto e crescente do presidente na política externa". Para os pesquisadores do OPSA, a presidencialização da política externa é resultado não apenas da "centralidade do presidente da República no estabelecimento da agenda política da nação", como do fato de que, em última instância, "os atos de escolha e demissão de seus ministros são de sua estrita competência".

No que diz respeito à polítização da política externo no regime democrático brasileiro e à inadequação da crítica que ressalta o "viés ideológico" da diplomacia Lula e Dilma, o artigo de Maria Regina Soares de Lima e Rubens Duarte soa perfeito. No entanto, o texto parece, de alguma forma, celebrar a estratégia petista em detrimento da atuação tucana no campo, uma interpretação que, ao meu ver, deve vir acompanhada de uma análise histórica contextual. Nesse caso, a pergunta que fica é: sem as ações de estabilização e atualização da agenda implementadas anteriormente teria sido possível o desenvolvimento de uma estratégia mais assertiva de política externa no governo Lula? Dificilmente.

Além disso, a ação estratégica internacional do Brasil durante a Presidência Lula, em especial, pode ser criticada de outras maneiras que não aquela calcada no argumento do "viés ideológico". Ou seja, novamente pergunta-se: talvez não tenham dado os autores importância demais a uma crítica desprovida de qualquer fundamento mínimo de sustentação?

O professor Rob Walker, por exemplo, faz críticas bastante contundentes à política externa de Lula por outros parâmetros, bem mais sofisticados. Segundo ele, como já reproduzido anteriormente neste blog, o conceito de multipolaridade pode ser muito útil, mas não se pensado como no século XIX: "É nesse sentido que deveríamos prestar atenção ao pluralismo. O plural, por si só, não é algo necessariamente positivo. É preciso ter muita atenção sobre como o plural está sendo pensado. Por um lado, pode-se fazer muita coisa interessante com o termo, em prol do entendimento de novas formas de distribuição de poder e da autoridade. Por outro, o discurso predominante sobre o tema reproduz formas muito antigas e perigosas da velha política de poder bismarkiana. Nesse ponto em particular, a contribuição da política externa brasileira para o sistema internacional é, no mínimo, discutível, não parecendo mais que uma imitação da Alemanha de Bismarck".

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A vida nos "aglomerados subnormais"

Onde TV, geladeira e celular chegam primeiro.

Divulgado no último dia 6, relatório do IBGE sobre as favelas traz à tona um tema político tão antigo quanto importante, a deficiência na provisão de bens públicos em contraposição aos acessos de consumo na sociedade brasileira. Mesmo que as informações sejam específicas desse tipo de comunidade que, por viver na maior parte das vezes ao redor das grandes cidades, ganha características específicas desse entorno, a conclusão dos resultados é a de que, ao menos nas favelas brasileiras, TV e geladeira chegam primeiro que saneamento, hospital, escolas e, muitas vezes, segurança.

Segundo a pesquisa, realizada sobre o ano de 2010, 6 mil favelas abrigavam no Brasil, na época, mais de 3 milhões de residências e mais de 11 milhões de pessoas, a maior parte no Sudeste. Além disso, as cinco maiores regiões metropolitanas brasileiras concentravam quase 60% dos moradores de favelas. Desse total, 18,9% na Grande São Paulo e 14,9% no Rio de Janeiro e entornos, além de Belém, Salvador e Recife.

A pior disparidade apresentada está, por exemplo, na educação. Nas comunidades analisadas, o índice de uso de creche e escola pública é de 90%, mas apenas 1,6% tem ensino superior. Fora das escolas boas, poucos chegam à universidade. Por ironia, às públicas muito menos.

Como no "asfalto", no entanto, mais de 90% dos moradores de favela têm geladeira e televisão. O uso do celular é intenso. Mais de 50% das residências nessas comunidades têm somente o telefone celular, o índice do lado de fora é de 32,8%. Apesar disso, os números sobre "computador" e "computador com acesso a internet" são quase três vezes menores dentro que fora das favelas.

Essas pessoas, com geladeira, televisão e celular, moram no que o IBGE chama de "aglomerados subnormais", ou seja, "assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos e palafitas". Seja onde estiverem, e poderiam ter arrumado um nome melhor, os moradores de tais comunidades teriam por teoria direito a escola, oportunidades iguais, hospital, acesso à justiça, saneamento e segurança, como é devido a todo e qualquer cidadão. Afinal, essas são funções básicas da autoridade política, das quais dependeria sua própria origem e existência. Ou não?