segunda-feira, 22 de março de 2010

Jimmy Carter responde a Walter Russell Mead

Em cartas enviadas à Foreign Policy, o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter e o assessor de Segurança Nacional do seu governo, Zbigniew Brzezinski, responderam ao artigo de autoria de Walter Russell Mead, "The Carter Syndrome", publicado na edição da revista de janeiro/fevereiro deste ano e comentado aqui neste blog em uma postagem anterior. No artigo, Mead, conhecido especialista em política externa americana, com vários livros publicados sobre o tema (incluindo o excelente Poder, terror, paz e guerra, cuja edição brasileira é da Zahar), apresenta o atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, como um jeffersoniano clássico, na mesma linhagem do ex-presidente Jimmy Carter. 

Como escrevi, Mead afirma que os presidentes americanos enxergam o mundo normalmente por meio do pensamento e da prática de quatro grandes políticos da história dos Estados Unidos: Alexander Hamilton, Woodrow Wilson, Thomas Jefferson e Andrew Jackson.

Os hamiltonianos têm por base um caráter mais realista, defendem governos fortes que apoiem os interesses econômicos dos Estados Unidos no ambiente internacional. Wilsonianos gostam de promover a democracia e os direitos humanos no planeta. Jacksonianos são mais belicosos. Como descreveu Mead: "Jacksonians are today´s Fox News watchers. They are populists suspicious of Hamiltonian business links, Wilsonian do-gooding, and Jeffersonian weakness".

Jeffersonianos, como Barack Obama e Jimmy Carter, segundo Walter Russell Mead, não são taxados de fracos pelos jacksonianos à toa, afinal são partidários da vida simples, de governos pequenos, não gostam de máquinas públicas de guerra e intervenções internacionais desnecessárias, são contrários ao exagero de compromissos americanos no mundo e acham que tudo isso corrói e distorce a democracia. Para eles, a melhor política externa dos Estados Unidos é servir de exemplo para outras nações, construindo internamente uma vida social justa, pacífica e livre. Vem daí a ênfase de jeffersonianos nos assuntos internos, como a de Barack Obama sobre a reforma no sistema de saúde dos EUA.

Mas jeffersonianos, segundo Mead, têm muitos problemas para colocar suas visões em prática nos dias de hoje. Em especial três: 1) a real capacidade de desengajamento de Washington dos assuntos internacionais; 2) a tendência a transparecer fraqueza no não-envolvimento; e 3) o forte viés wilsoniano da política americana e, nos casos de Obama e Carter, do Partido Democrata. Para o autor, o grande exemplo da dificuldade de implementar esse tipo de postura está exatamente no governo Carter, muitas vezes considerado indeciso e fraco frente aos desafios internacionais de sua época, ainda na Guerra Fria. Como escreveu: "In recent history, Jeffersonian foreign policy has often faced attacks from all the other school of thoughts. Kissinger´s policy of détente was blasted on the right by conservative Republicans (...) and on the left by human rights democrats (...). Carter faced many of the same problems, and the image of weakness and indecision that helped doom his 1980 run for re-election is a perennial problem for Jeffersonian presidents".

E foi o tom de Walter Russell Mead sobre o governo Carter que incomodou o ex-presidente e seu assessor de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski. Carter lembrou que seu mandato ainda lidava com o problema do equilíbrio estratégico com os soviéticos, com o objetivo de evitar um conflito que trouxesse a destruição total. O ex-presidente afirmou na carta que, para evitar uma "confrontação militar catastrófica", negociou com os soviéticos "em posição de força" o acordo de desarmamento SALT II, com o intuito de restringir e reduzir o arsenal de ambos os países.

Além disso, disse o ex-presidente, seu governo fez análises comparativas constantes das capacidades militares de Estados Unidos e União Soviética, com a participação de Brzezinski e do professor Samuel Huntington, o polêmico autor da tese do "choque de civilizações". Com base nessas análises, Carter contou que decidiu modernizar a capacidade americana de dissuasão/deterrência tendo por base a noção de que Washington estava bem à frente de Moscou no terreno não-militar. A ideia assim foi se aproximar das nações não-alinhadas, promovendo questões como a paz, a liberdade, a democracia e os direitos humanos, melhorando, teoricamente, a imagem dos Estados Unidos em regiões onde os soviéticos eram mais bem vistos.

Como parte dessa mesma estratégia e mesmo sob protestos dos aliados europeus, Carter contou que pressionou a União Soviética com relação ao tratamento dado pelo Kremlin às populações não-soviéticas, como os judeus, por exemplo.

Da mesma forma, Carter lembrou que negociou com os chineses durante um ano sobre a questão de Taiwan e chegou a um acordo em dezembro de 1978, o que proporcionou o estabelecimento de um novo e completo relacionamento dos Estados Unidos com o país asiático.

"This was a strategic turning point in U.S.-China relations that my predecessors had not been willing or able to consummate. As China´s global influence increased, the Soviet Union´s was diminished. This was, perhaps, the most serious challenge to the global status of the Soviet Union. In addition, Moscow´s enormous influence with Arab leaders in the Middle East was severely attenuated by our successful peace efforts", comentou o ex-presidente.

Carter também lembrou do acordo de paz mediado pelo seu governo entre Egito e Israel, o primeiro reconhecimento do Estado israelense por um país árabe. Ressaltou, ainda, sua postura contra os regimes descriminatórios na África, como o apartheid sul-africano, e o comportamento condenatório do seu governo às ditaduras presentes na época em muitas nações, inclusive no Brasil, o que teria produzido uma nova imagem dos Estados Unidos nesses países.

O ex-presidente também chamou a atenção para sua resposta agressiva à invasão soviética do Afeganistão e suas limitações com relação à situação no Irã - a Revolução Islâmica de 1979 é considerada um dos grandes fracassos da política externa de Jimmy Carter. Com uma carta mais resumida, Brzezinski fez uma lista dos mesmos pontos apresentados pelo ex-presidente, que concluiu alertando para o fato de que a ausência de um conflito armado em seu governo não o faz fraco ou indeciso. Dado o momento, muito pelo contrário.

Na tréplica, também publicada pela Foreign Policy, Walter Russell Mead ressaltou que seu artigo não teve como foco a política externa do governo Jimmy Carter. No entanto, reafirmou que suas pesquisas indicam que a política de direitos humanos desse governo foi percebida entre os soviéticos como um retorno das hostilidades e um repúdio à détente, e que Carter, em especial no início do seu governo, teve dificuldades para se posicionar entre o desejo de reforçar a détente e o de promover os direitos humanos. Para Walter Russell Mead, Obama enfrentará desafios semelhantes nas suas relações com nações como o Irã e a China.

segunda-feira, 8 de março de 2010

A esquerda contra a esquerda no Brasil

As eleições de 2010 vão consolidar o alinhamento político e a estabilidade institucional que estão por trás da prosperidade recente do país

(versão traduzida de artigo em inglês enviado para o site openDemocracy)


Para os brasileiros, os próximos 10 meses serão muito especiais. A Copa do Mundo, em junho, e as eleições para deputados, senadores, governadores e presidente, em outubro, vão ganhar a atenção de todos em 2010. Ainda mais em um momento em que se define o futuro político do país sem Lula – pela primeira vez, desde o fim do regime militar, o presidente não participará de uma eleição democrática para o cargo em Brasília. Além disso, o Brasil tem grandes desafios pela frente e vem chamando a atenção da grande imprensa internacional, tanto pelos seus futuros compromissos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, quanto por sua relativa prosperidade econômica e institucional.

Já na corrida do ano, por exemplo, a senadora e candidata à Presidência pelo Partido Verde, Marina Silva, aterrissa no aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, atrasada para a entrevista marcada com uma rádio nacional. Ela twitta a estação e avisa que está a caminho.

Segundo a senadora, como afirmou à rádio CBN, em 26 de fevereiro, seu esforço de campanha pretende mostrar às pessoas que é preciso "construir uma sinfonia, que todos possam fazer parte dessa orquestra, que vai mudar a forma de produzir, consumir, se relacionar com a natureza". Além disso, a tese da senadora, que fica bastante clara na entrevista, é de que sua campanha representa aqueles que defendem um novo alinhamento político para o Brasil, uma configuração que pudesse quebrar a polaridade PT-PSDB.

Por mais que Marina Silva queira, no entanto, argumenta-se aqui que as eleições de 2010 vão consolidar o atual alinhamento político brasileiro, polarizado. Decisivo nessas eleições não serão candidatos, mas partidos e políticos, e PT e PSDB serão, sem dúvida alguma, as legendas que irão canalizar as forças em campo. Não à toa a candidata do Partido Verde gostaria de ver outro tipo de configuração dominante. Na atual, ela não terá chances.

Além disso, este texto também argumentará que a atual polarização da política brasileira é um pilar importante da atual prosperidade econômica e institucional do país. Sendo o PT ou o PSDB vitorioso nas eleições de outubro e novembro de 2010, a tônica será de continuidade. Afinal, na atual configuração política brasileira, polarizada entre esses dois partidos, ninguém quer ser a direita.

Polarização e continuidade

Um dos motivos pelos quais a polarização se tornará mais forte com as eleições de 2010 vem do fato que os dois pré-candidatos são ambos produtos de outras Presidências. José Serra é um político experiente com uma ampla e importante história de militância política em São Paulo. No entanto, ganhou visibilidade nacional apenas quando foi ministro da Saúde no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Serra venceu a guerra política interna para sair candidato à sucessão de FHC, mas perdeu para Lula, na primeira vez em quatro tentativas que o candidato petista foi eleito presidente, em 2002.

Do outro lado, Dilma Russeff não tem experiência alguma em grandes eleições. Foi lançada ao topo depois que os escândalos de corrupção envolvendo grandes nomes do governo Lula, como José Dirceu e Antonio Palocci, deixaram um vazio de poder que foi preenchido pela ministra. A candidata petista cresce ao lado de Lula, atrás da enorme popularidade do presidente. Segundo o Datafolha, o governo Lula é o mais popular dos governos desde 1990: 73% dos entrevistados o vêem como bom ou muito bom. Dilma Rousseff tem em suas mãos a fortuna de ser a escolha do presidente na primeira vez, desde o retorno da democracia no Brasil, que ele estará fora do páreo.

Da mesma forma, algo bastante representativo da influência da polarização na política brasileira é a tentativa de transformar a campanha de 2010 em um plebiscito envolvendo os dois governos: Lula e FHC. Em novembro do ano passado, o recém-eleito presidente do PT, José Eduardo Dutra, afirmou: "A população vai comparar dois projetos que conhece: o da oposição, materializado nos 8 anos do governo FHC, e o nosso, materializado nos oito anos do governo Lula".

A estratégia repetida por diversas vezes desde o fim do ano passado não só reforça a polarização por meio do discurso político como o faz de um modo favorável ao PT. É claro que o fato de Lula não ter tido que lidar com a instabilidade crônica que a economia brasileira vivia há décadas antes do Plano Real lhe deu uma liberdade de governar que a administração anterior não teve. Não à toa, FHC respondeu em artigo recente, publicado na imprensa: "O presidente Lula passa por momentos de euforia que o levam a inventar inimigos e enunciar inverdades. Para ganhar sua guerra imaginária distorce o ocorrido no governo do antecessor".

Além disso, outra razão que favorece a polarização atual da política brasileira é o caráter pragmático que se estabeleceu após a restauração do regime democrático. Por mais que o senso comum pense o contrário, não há dúvidas de que os 20 anos de democracia reforçaram os partidos, em detrimento do político carismático tradicional ou do "coronel" local. Como mostra uma alardeada pesquisa sobre a geografia eleitoral brasileira, qualquer candidato à Presidência deve lidar com pelo menos quatro "estruturas de poder": a classe média educada e urbana, os evangélicos, o populismo da periferia e as oligarquias regionais.

Lula, por exemplo, fez uma aliança com os evangélicos ao ter José Alencar como vice-presidente. Alencar, do Partido Republicano Brasileiro (PRB), é um político conservador que já se manifestou publicamente contra o homossexualismo – "é contrário à natureza humana" – e o casamento do mesmo sexo.

O atual presidente, que sempre foi popular na classe média intelectualizada, tem também ao seu lado a periferia, com seus programas sociais, e as oligarquias regionais, com o apoio de políticos como José Sarney.

Além disso, nas regiões mais pobres, programas sociais como o Bolsa Família transforma o poder local, substituindo o "coronel" pelo prefeito. Ao mesmo tempo, projetos desse tipo garantem votos na periferia. Novamente segundo o Datafolha, 40% daqueles que recebem o Bolsa Família têm a intenção de votar em Dilma Rousseff, contra 25% que pretendem votar em Serra. Todas essas estratégias pragmáticas que estiveram por trás da eleição de Lula em 2002 e 2006, e nos seus dois governos, serão novamente utilizadas na campanha de Dilma Rousseff.

No lado do PSDB, a chave estratégica do partido é o governador Aécio Neves. Após dois mandatos no governo de Minas Gerais, que lhe dá uma popularidade acima de 70% no estado, Aécio Neves se vê pressionado pelo partido a aceitar a Vice-Presidência. Ao lado do governador, Serra teria os votos do segundo maior colégio eleitoral do país, além daqueles do seu próprio estado. Além disso, a presença de Aécio Neves na chapa poderia reduzir a resistência a Serra, muitas vezes visto como paulista demais e arrogante. Como se não bastasse, para o PSDB, uma chapa com José Serra e Aécio Neves poderia garantir 16 anos na Presidência. Deixando a Vice-Presidência, o atual governador mineiro seria um candidato praticamente imbatível em 2018 e 2022, e não é à toa que o presidente Lula está tão empenhado nesta eleição. Está em jogo o legado do seu próprio governo.

Conclusões

Nesse sentido, não há dúvidas, as eleições de 2010 vão consolidar ainda mais a atual polarização da política brasileira. Como já foi afirmado, partidos e políticos serão mais decisivos que candidatos nos resultados de outubro e novembro. Ao mesmo tempo, nota-se que essa polarização é extremamente benéfica para o país e está sob a atual prosperidade material e institucional brasileira.

Em primeiro lugar, a polarização garante a presença de uma oposição forte e influente e a possibilidade de alternância de poder sem grandes rupturas. Com isso, reforça as instituições políticas e a continuidade.

Em termos gerais, os governos Lula e FHC não foram tão diferentes assim. Ambos sustentaram a estabilidade econômica e trabalharam em áreas sociais que estavam negligenciadas por décadas. Fernando Henrique Cardoso deu mais atenção à saúde e à educação básica. Lula, às universidades, ao Bolsa Família e à infra-estrutura.

Da mesma forma, Dilma Rousseff e José Serra também não são tão diferentes assim. Ambos são vistos como centralizadores que enaltecem suas capacidades de administrar. Se é possível dizer que o PT acredita mais (e o PSDB, menos) no Estado como solução para problemas sociais e econômicos, e que os dois partidos têm certamente visões bem diferentes para a política externa, nem FHC muito menos Serra são exemplos de políticos liberais, no sentido inglês da palavra. De fato, ambos poderiam ser considerados liberais nos Estados Unidos, onde um político desse tipo se apresenta como "de esquerda" e defensor moderado de uma presença atuante do Estado na sociedade.

Por mais que o PT gostaria que fosse, o PSDB não se caracteriza como um partido clássico de direita. Psdebistas são mais socialdemocratas que liberais e conservadores. Da mesma forma, a necessidade de compor alianças forçou o governo PT a caminhar mais para o centro. Nesse contexto, a polarização garante continuidade e transforma a centro-esquerda na posição política dominante no Brasil.