quinta-feira, 24 de maio de 2012

Razão e política na tragédia

Um diálogo entre Isaiah Berlin, Hannah Arendt e o contexto político brasileiro.

Os caminhos da política são mesmo surpreendentes. Como se não bastasse literatos do porte de Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau, Voltaire, Tocqueville, entre outros, leituras obrigatórias na Ciência Política, alguns passos mais à frente podem levar alguém mais interessado às experiências da Filosofia Política e a leituras, ao menos mais cuidadosas, de nomes como Hannah Arendt e Isaiah Berlin.

É fascinante perceber, por exemplo, não somente que Arendt e Berlin são dois autores judeus escrevendo sobre a política logo após o Holocausto – ela alemã, ele originalmente russo –, mas também que ambos produziram obras seminais sobre a política mais ou menos no mesmo momento.

O clássico Idéias políticas na era romântica, recentemente publicado no Brasil pela Companhia das Letras, reúne uma série de conferências produzidas por Isaiah Berlin entre 1950 e 1952. Poucos anos depois, na segunda metade da mesma década, Hannah Arendt se dedicou a um livro nunca terminado de "introdução à política", de onde saíram os manuscritos do fantástico O que é política?Was ist Politik?, lançado pela primeira vez em 1993, na Alemanha, e publicado no Brasil em 2009 pela editora Bertrand. Quando a questão é consciência política, Berlin e Arendt parecem tocar no mesmo ponto: a tragédia da política moderna reside na razão técnico-científica da Modernidade.

Para Hannah Arendt, pensamento e política se distanciaram desde o repúdio platônico, ligado à condenação de Sócrates e o choque entre a interdependência característica da política e a introspecção da filosofia. A política acabaria, nesse contexto, renegada ao reino "farsante" da retórica.

Não à toa, Arendt preocupou-se com o sentido da política, em um momento em que esta, muitas vezes confundida com o Estado, estava sendo responsabilizada pelas maiores tragédias da história humana: a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, as bombas atômicas no Japão, as milhões de mortes estúpidas na Europa e na Ásia e a Guerra Fria.

Para a pensadora, o afastamento entre o pensamento e a política e por conseguinte a ausência do elemento ético tornaram a política um terreno propício ao desenvolvimento de concepções puramente técnicas, onde puderam aflorar noções mais violentas e egoístas do real. Sob tais parâmetros, a humanidade chegaria a conceber sua própria extinção.

De modo semelhante, Isaiah Berlin aponta o dedo para a  metafísica platônica. Segundo o autor, a hegemonia da concepção metafísica do mundo favoreceu a constituição de realidades dominadas pela intolerância. Afinal, para Berlin, os modelos metafísicos que servem de exemplo para a "realidade" nada mais são que meras ficções e como essas mesmas ficções se tornam canônicas é um problema essencialmente político. Não à toa, Isaiah Berlin ressalta uma ruptura no pensamento sobre a política com a chegada do que chamou de "era romântica", entre o fim do século XVIII e início do XIX, ou seja, em torno das revoluções Americana e Francesa, eventos também tratados por Hannah Arendt. A "era romântica", ao dessacralizar a verdade, propiciaria, para Berlin, percepções mais plurais sobre o real e, consequentemente, uma discussão política mais ligada à ontologia da história.

Berlin também via consequências políticas da metafísica. A noção de que há um ente superior perfeito a se espelhar como modelo teria transformado a política, segundo ele, em uma questão absolutamente técnica, de onde se originam, por exemplo, as obrigações com a estatística, a eficiência, o número, o cálculo, a porcentagem, a burocracia e o procedimento. Nesse contexto, de acordo com o autor, a noção de "liberdade negativa" é um instrumento de defesa do cidadão contra os abusos constantes do aparelho estatal.

Tanto Hannah Arendt como Isaiah Berlin trazem contribuições generosas ao contexto político contemporâneo no Brasil, mais uma vez em meio a um escândalo (midiatizado) de corrupção. Ambos põem em discussão o acesso à vida pública, as formas de participação do cidadão, o próprio terreno da política, do que a política deve se ocupar e do que não deve. Arendt e Berlin, à la Roland Barthes, pregam uma desnaturalização das instituições como dessacralização da verdade e do real.

Se estamos afastados da política é por que há algo errado com a política, ou com a forma na qual pensamos a política. A democracia, como ideal, nunca esteve em tão alta estima, mas essa situação histórica não pode servir de impedimento a um questionamento mais profundo sobre práticas, instituições e valores da política contemporânea. Em especial, não pode ser uma barreira para pensarmos o que realmente queremos da política.

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