quinta-feira, 1 de março de 2012

Ufanismo estratégico

Tragédia na Antártica expõe contradições do Estado brasileiro.

Uma das mais importantes teorias do estudo da consciência política, em especial daquela produzida e reproduzida na mídia, diz respeito aos "enquadramentos" utilizados na interpretação de determinados fatos e fenômenos. A grosso modo, a idéia é a de que o discurso midiático não somente chama a atenção para determinados assuntos específicos, tendo um peso importante na construção da agenda política e social, como também apresenta interpretações próprias, modos específicos de pensar e analisar os temas propostos.

No caso do incêndio da base brasileira Comandante Ferraz na Antártica, por exemplo, ocorrido na madrugada do sábado, 25/02, e que esteve presente na cobertura jornalística do país durante toda a semana, muito claramente predominou o que pode ser chamado de "enquadramento da escassez", que associa a tragédia ao corte de verbas e à falta de apoio por parte do governo federal a pesquisas consideradas estratégicas para o país.

Logo no domingo, 26/02, a Folha publicou a matéria principal "Fogo destroi (sic) base na Antártida e mata 2", acompanhada do texto "Carência de recursos prejudica programa antártico". Na segunda, dia 27/02, o jornal paulista também chamou a atenção para o fato de que a "Verba para programa antártico é a mais baixa dos últimos anos". Da mesma forma, O Globo, no domingo, publicou a matéria principal com o título "Pesquisa científica em chamas", com um texto secundário na página seguinte intitulado: "Incêndio ameaça futuro de pesquisas estratégicas do Brasil". Mais adiante, na terça-feira, 28/02, um box de opinião do Globo afirmou: "[É] preciso investigar a fundo o que houve. Não só as causas técnicas, específicas do desastre, mas também averiguar se cortes feitos no orçamento do projeto não o vulnerabilizaram". O Jornal Nacional também seguiu o mesmo caminho. Em matéria do dia 27/02, o telejornal citou relatório do Contas Abertas do mesmo dia que aponta para o problema da escassez orçamentária.

Junto à questão relativa aos recursos, outra interpretação corrente é a de que a ação do Brasil e as pesquisas brasileiras feitas na Antártica têm importância "estratégica". O termo foi utilizado pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp, por exemplo, que afirmou no Globo, na página 3 da edição de 27/02 : "O programa Antártico é estratégico para o país. Então, não pode parar". O mesmo jornal, no dia anterior, afirma na página 4 que: "Do ponto de vista estratégico, a presença do Brasil na Antártica também é fundamental". Na Folha, o ministro da Defesa, Celso Amorim, chegou a afirmar (página A7, 27/02) que o programa brasileiro é importante "não apenas para o Brasil como para a própria humanidade".

De fato, ao que parece, o Brasil desenvolve, como afirma um cientista no Globo (p.4, 26/02), pesquisas de "impacto mundial" na Antártica. Ainda no Globo, no mesmo texto, a bióloga da UFRJ Lúcia Siqueira Campos aparece afirmando que o Brasil faz "ciência de ponta na Antártica". Segundo publicado pelo jornal, são "estudos com implicações importantes sobre o clima no Brasil, recursos pesqueiros e biodiversidade", com equipamentos caros avaliados em até US$ 1 milhão.

No continente gelado, o país faz pesquisa sobre a retração das geleiras e o impacto disso no clima global, a diminuição do gelo marinho e a consequente redução de krill no mar, que alimenta as baleias azuis, sobre os efeitos da radiação ultravioleta, sobre substâncias anticongelantes encontradas nos peixes e outros organismos vivos da região, sobre as alterações nas correntes marinhas que afetam o clima brasileiro etc. Tudo isso apoiado por instituições como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Instituto de Ciência e Tecnologia Antártico de Pesquisas Ambientais e do Comitê Nacional de Pesquisas Antárticas.

Segundo o Contas Abertas, foram estimados pelo governo brasileiro, entre 2001 e 2011, R$ 145 milhões para gastos na Antártica, mas investidos de fato somente R$ 114 milhões. Pouco? Dá para duvidar. Para um país que não consegue prover educação básica de qualidade mínima para as suas crianças ou oportunidades iguais mínimas universais para seus cidadãos, saúde pública minimamente respeitosa, segurança pública e justiça em seu já vasto território, não parece pouco.

Na mesma semana, sem ganhar tanta atenção, o Ministério da Educação elevou o piso salarial dos professores brasileiros em jornada de 40 horas para R$ 1.451,00, valor que muitas prefeituras, por todo país, reclamam que não vão conseguir pagar a seus mestres. Oxalá algum dia, no Brasil, educação, saúde, justiça e segurança sejam também áreas consideradas estratégicas.

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