quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Jornalismo e democracia no Brasil

Morte de repórter-cinematográfico em manifestação joga luz sobre o papel da imprensa no regime democrático brasileiro.

A morte do repórter-cinematográfico Santiago Idílio de Andrade, da Rede Bandeirantes, na segunda-feira (10/02/2014), provocou uma avalanche de editoriais na grande mídia brasileira em defesa da liberdade de imprensa no país e da importância do jornalismo para o ambiente democrático no Brasil. Em editorial veiculado na edição do mesmo dia da morte de Santiago, o Jornal Nacional, por exemplo, afirmou que "é essencial, numa democracia, um jornalismo profissional, que busque sempre a isenção e a correção para informar o cidadão do que está acontecendo. E o cidadão, informado de maneira ampla e plural, escolha o caminho que quer seguir". O texto termina afirmando: "Sem cidadãos informados não há democracia".

No dia seguinte, editorial do jornal O Globo argumentou: "Se grupos radicais buscavam um cadáver nas manifestações de rua, conseguiram. Mas não foi o que poderiam imaginar. Em vez de jogar mais combustível na ferocidade do vandalismo em cima do corpo de um manifestante, mataram um repórter-cinegrafista no exercício de uma atividade essencial para a democracia, relatar os fatos para a sociedade". Ao fim, diz o periódico, "Atingiram a própria democracia, que tanto desprezam".

Também no dia 11, a Folha afirmou em editorial: "Identificar, julgar e punir autor e cúmplices do disparo que matou Andrade é tarefa urgente para evitar danos ainda mais graves. Com desenvoltura incontida, esses delinquentes têm transformado atos pacíficos em campos de batalha, ameaçando a segurança de quem está por perto e minando importantes pilares da democracia.  Um deles é a própria legitimidade das manifestações. (...) O outro é a liberdade de imprensa".

A relação entre jornalismo e democracia é um tema tradicional no campo da Comunicação e Política, e a imprensa é em geral tida como uma das mais importantes instituições que sustentam os regimes democráticos. O jornalismo fiscaliza políticos e governos, informa o cidadão, cobra, denuncia e debate temas da política ou comuns à sociedade. Na verdade, a política acaba sendo nos Estados modernos – se não em sua totalidade, ao menos em sua boa parte – o que se chama de "realidade mediada", ou seja, o cidadão tem contato com a política basicamente por meio do jornalismo midiatizado, que assume papel fundamental no desenvolvimento das democracias.

Apesar disso, a relação entre jornalismo e democracia não é, nem poderia ser, algo pronto, estabelecido, que não possa ser problematizado. Ou seja, o fato de haver imprensa livre e democracia não implica uma relação 100% benéfica para o regime democrático ou a sociedade. Na verdade, trata-se de um objeto complexo, para onde se deslocam inúmeras pesquisas e discussões. Se é verdade que, na democracia, uma imprensa é melhor que nenhuma imprensa, isso não significa que a relação entre jornalismo e democracia seja positiva em todos os seus aspectos, momentos e/ou configurações.

Nesse sentido, se a morte de Santiago de Andrade despertou argumentos adormecidos sobre a importância da imprensa, o fato também parece estar servindo menos à reflexão e mais à reprodução de lógicas um tanto defasadas que tentam legitimar na marra a representatividade da grande imprensa no regime democrático brasileiro.

Afinal, quando o Jornal Nacional afirma que é "essencial, numa democracia, um jornalismo profissional, que busque sempre a isenção e a correção para informar o cidadão do que está acontecendo. E o cidadão, informado de maneira ampla e plural, escolha o caminho que quer seguir", pode-se lembrar, por exemplo, que a relação entre jornalismo e democracia no Brasil sofre com uma configuração excessivamente concentrada, adquirida em tempos pré-democráticos e com base em um relacionamento histórico e duradouro da empresa beneficiada com um regime não-democrático. Além disso, que tal relação pena com o fato de que a mesma empresa se coloca, com legitimidade questionável, na função de representante público do cidadão brasileiro, tendo por base um discurso legitimador calcado em noções sobre isenção, neutralidade e profissionalismo jornalístico que não se sustentam, sejam atacadas pela história ou por simples questionamento epistemológico.

Perguntas semelhantes podem ser feitas quando O Globo afirma que "mataram um repórter-manifestante no exercício de uma atividade essencial para a democracia, relatar os fatos para a sociedade". Ora, quando é mais que notório que nem O Globo nem qualquer outro órgão de imprensa apenas "relata" os fatos para a sociedade, onde estão as bases para a legitimidade da imprensa e seu papel representativo do cidadão no ambiente democrático?

Dessa forma, se a morte de Santiago de Andrade tirou a poeira do debate sobre jornalismo e democracia no Brasil, homenagem maior o jornalismo brasileiro faria ao cinegrafista se aproveitasse a ocasião para refletir sobre os problemas fundamentais que envolvem a relação no país, como a concentração excessiva da estrutura midiática, a baixa remuneração dos profissionais nas redações, o uso intensivo de mão-de-obra ainda em formação e/ou de pouca experiência, a fraquíssima formação intelectual do jornalista em geral, o uso político das concessões de comunicação midiática, o preconceito do jornalismo com a universidade e o pensamento acadêmico, a espetacularização/novelização da notícia e da política, a baixa representatividade social nos debates midiatizados, a superficialidade excessiva da produção jornalística, a ênfase desmedida no entretenimento etc.

Nesse contexto, a reprodução desenfreada de lógicas defasadas e discursos questionáveis de legitimidade podem apenas alimentar a tragédia. Como escreveu a Folha, com base em um relatório da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji): "A morte de Santiago Andrade é, por óbvio, o episódio mais lamentável, mas, considerando a ação policial e a de manifestantes, foram registrados, desde junho, inaceitáveis 117 casos de agressão, hostilidade ou detenção de jornalistas".

2 comentários:

  1. Mais antiga do que a defesa da imprensa, caro Arthur, me parece a prática política brasileira. Oito meses após as manifestações de junho, pouca coisa mudou neste lado dos trópicos. Entraram em cena os políticos profissionais, que se aproveitam do anseio popular para ganhar visibilidade. Enquanto isso, 50 mil brasileiros são vítimas de mortes violentas por ano, a inflação está surreal, a indústria está paralisada, mensaleiros condenados na Justiça se livram das multas aplicadas graças a "vaquinhas" republicanas, o fisiologismo continua a dar as cartas na Esplanada e nos acordos partidários.
    A morte de Santiago não foi uma fatalidade. Reflete um estado crescente de tensão social, e os ocupantes do poder público estão apopléticos ante as manifestações. Só resta aplicar a força bruta para conter a massa.
    Por dever de ofício, a imprensa está exposta a ataques. Continuará a fazer o seu trabalho, apesar dos problemas específicos da mídia. É muito fácil defender a democracia na segurança virtual das redes sociais e com camiseta no rosto. Difícil é ir à rua -- como fazem milhares de jornalistas todos os dias -- e trabalhar por uma sociedade mais justa, mais informada, menos alienada, menos violenta. Soltar rojões em praça pública não me parece ser o caminho adequado para termos um Brasil melhor.
    Abs, Carlos Alexandre.

    ResponderExcluir
  2. Meu caro, obrigado pela leitura e pelo comentário, sóbrio e enriquecedor. Grande abraço, Arthur

    ResponderExcluir